Maria além dos títulos, entre o povo e o Vaticano
Maria sempre foi maior do que qualquer moldura teológica
Publicado: 13/11/2025 às 12:15
Maria cabe no coração do povo (Foto: ASphotofamily/freepik)
João Carvalho, jornalista e mestrando em Ciências da Religião pela Unicap
Maria sempre foi maior do que qualquer moldura teológica. Para muitos, incluindo eu, ela é mais do que a imagem serena de mãe protetora que a Igreja Católica insiste em oferecer. Aquela figura doce, de olhar compassivo e manto azul, promessa de consolo. Bonita, mas isso é apenas uma parte. Porque Maria, para quem olha com profundidade, é forte. É guerreira. É a que atravessa a dor, a perda e a injustiça. A que acompanha o Filho na morte e permanece de pé. A que ancora outros quando a esperança parece sumir. Há grandeza na sua resistência silenciosa. Há coragem na sua permanência. Há força na sua fé.
Essa Maria, mulher de Nazaré, não é frágil. É firme. É ponte. É porto. E talvez por isso mesmo o povo a reconheça assim. Não somente como enfeite de altar, mas como personagem viva da resistência humana. É a Maria de Ariano Suassuna, como a Compadecida, mas também forte. A que intercede pelos mais sofridos, encara o mundo de frente e se mantém firme quando tudo desaba. A que não se intimida diante da injustiça. A que conhece a dor do povo e, ainda assim, oferece o consolo que salva e sustenta. A Maria que é mãe, guardiã, justiça, ternura e coragem.
A Nota Mater Populi fidelis, publicada pelo Vaticano, rejeita novamente o título de Corredentora. Para Roma, é inoportuno e arriscado. O medo é que Maria ofusque Cristo. Mas isso revela um abismo. De um lado a teologia que busca precisão e controle institucional e patriarcal. Do outro a devoção popular, que fala com símbolos, afetos e sobrevivências. Para o povo, Maria não compete com Cristo. Ela completa o que Cristo, às vezes distante, não alcança. É ela quem escuta os desesperados. A que acolhe os que chegam pelas bordas. A que entra onde discurso algum chega.
O Prof Dr Gilbraz Aragão, pesquisador da Universidade Católica de Pernambuco, observa que falta diálogo dentro da própria religião. A Igreja deveria ouvir mais suas próprias vozes internas. Há progressistas que veem em Maria uma força feminina da fé, cura para uma espiritualidade marcada pelo patriarcado. Há tradicionalistas que a transformam em bandeira identitária. Há o povo simples que a chama de “minha Mãe”, sem precisar de autorização de teólogo algum. E há o Vaticano tentando costurar tudo isso com doutrina.
Gilbraz lembra que, se a instituição teme exageros marianos, o inconsciente popular clama por presença feminina no sagrado. A devoção a Aparecida, Guadalupe, às Marias morenas ou negras, não é erro. É expressão profunda de um povo marcado por ausências, migrações e abandonos. É teologia nascida da vida real.
E aqui voltamos à Maria que sentimos. A que salva não no sentido dogmático, mas no limite humano. Maria salva quando a vida empurra para o desespero. Salva quando o filho sofre, quando falta pão, quando o corpo adoece, quando a esperança se desfaz. Salva como mãe salva. Com colo. Com presença. Com fé no invisível.
Por isso, não adianta tirar dela o título de Corredentora se o povo já a coroou com algo maior. A confiança. A proximidade. O amor. O mistério vivido sem precisar de explicações complicadas.
No fim, a doutrina tenta enquadrar a fé, mas a fé escapa pelas frestas. Como água que sempre encontra caminho. Maria encontrará caminhos novos. Sempre terá nomes múltiplos. Sempre será maior do que definem os livros. Maior do que medem as palavras. Maior do que alcança qualquer nota que queira doutrinar.
Talvez seja assim porque Maria não cabe nas categorias que a Igreja tenta impor.
Maria cabe no coração do povo.