Carandiru ao ar livre
Não defendo passar a mão em cabeça de criminoso
Publicado: 31/10/2025 às 08:56
 
                                Dezenas de corpos são trazidos por moradores para a Praça São Lucas, na Penha, zona norte do Rio de Janeiro (Tomaz Silva/Agência Brasil)
Felipe Sampaio*
Não defendo passar a mão em cabeça de criminoso. Porém, sei que um povo que recebe livros desde a infância não procura fuzis da juventude. E se Deus é brasileiro, vai querer saber por que a violência habita os bairros com maiores privações sociais. Será que o Celestial fez os pobres mais violentos? Já que os pobres daqui são negros, será que o Divino criou os negros para serem violentos e pobres? Seria por isso que, quando se fala em bandido, maloqueiro, ou marginal, a primeira imagem que vem à mente brasileira é a de um preto jovem? Será que pobre negro bom é pobre negro morto?
São essas hipóteses que guiam o raciocínio médio da sociedade brasileira desde Cabral. Um preconceito histórico, cristalizado no nosso DNA, que nos faz achar normal, e até festejar, um massacre injustificável de mais de 120 pessoas - “quase brancos pobres como pretos” - como aconteceu na antiga capital federal. É assim há 500 anos aqui em Pindorama. Milhões de africanos sequestrados de suas vidas, vendidos como gado, violentados, desumanizados, rebaixados a semi-gente, para que sua escravização pudesse ser naturalizada. Ainda hoje, só são filhos de Deus na hora do dízimo e do trabalho sub-remunerado.
No âmbito de qual estratégia de pacificação (e em que tipo de cérebro) ainda se acredita que massacres, como esses que ocorrem na Guanabara mais pobre, podem melhorar a vida de alguém? Por certo, nem é isso que se almeja. Da mesma forma que não era o que se pretendia no Vietnam, nem no Congo ou em Soweto, tampouco em Auschwitz ou Gaza, muito menos nos Palmares. Vale tudo quando se trata de concentrar renda e riqueza.
O Rio bateu o recorde do Carandiru com louvor. Conquistou o feito a céu aberto, na rua, nas casas, no mato, na lama, na TV, no Instagram. As redes sociais aplaudem o “Tolerância Zero” fluminense. Nem sabem que é mentira que isso tenha funcionado em Nova York. O resultado na Big Apple foi mais repressão racial, especialmente contra jovens pobres negros, pra variar. Os avanços de lá na redução da violência só foram possíveis com a adoção de novas tecnologias de segurança pública e muita inteligência policial, associadas a políticas sociais para os mais vulneráveis e melhoria dos espaços públicos.
Também na Colômbia o que se viu inicialmente foi uma guerra urbana devastadora com traficantes, polícia, militares, narco guerrilheiros de extrema esquerda e milicianos de extrema direita. Só se conseguiu alguma paz duradoura quando adotaram os planos de desenvolvimento municipais baseados em políticas de urbanismo social, infraestrutura e bons serviços públicos - com foco nos locais e nas pessoas mais pobres. Medellín era a cidade mais violenta do mundo e tornou-se a menos desigual da América do Sul (a taxa de homicídios caiu de 381 para 10 mortes por cem mil habitantes).
Algo parecido aconteceu em Iztapalapa, México. Uma cidade com índices de violência alarmantes que só pioravam com os confrontos entre a polícia e as quadrilhas territoriais. A situação só melhorou com políticas sociais e urbanísticas iniciadas por uma prefeita progressista, de origem indígena. Outros países europeus e asiáticos também foram pacificados por meio de políticas de redução das desigualdades e de inclusão social, baseadas em serviços públicos e infraestrutura de qualidade.
Seja como e onde for, não há registro de pacificação urbana decorrente do extermínio de mais de cem moradores de bairros pobres. E enquanto Deus não define sua cidadania, “Reze pelo Haiti... o Haiti é aqui”.
* Cofundador do Centro Soberania e Clima; ex-diretor do Instituto de Estudos de Defesa no Ministério da Defesa; dirigiu a área de estatísticas do Ministério da Justiça; foi subsecretário de Segurança Urbana do Recife; atuou em grandes empresas, terceiro setor e organismos internacionais; foi empreendedor em mineração e é sócio da Terra Consultoria.
 
    
 
    
 
                 
            