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A casa como um mar de lembranças

Há poucos dias, uma troca de impressões de leitura com o escritor e acadêmico da ABL, José Paulo Cavalcanti Filho, sobre o significado emblemático da casa

Marcus Prado

Publicado: 27/10/2025 às 12:14

  Há poucos dias, uma troca de impressões de leitura com o escritor e acadêmico da ABL, José Paulo Cavalcanti Filho, sobre o significado emblemático da casa/Foto: tirachardz/freepik

Há poucos dias, uma troca de impressões de leitura com o escritor e acadêmico da ABL, José Paulo Cavalcanti Filho, sobre o significado emblemático da casa (Foto: tirachardz/freepik)

“As casas, como as pessoas humanas, podem e devem ter a sua biografia”
Gilberto Freyre

Marcus Prado*

Há poucos dias, uma troca de impressões de leitura com o escritor e acadêmico da ABL, José Paulo Cavalcanti Filho, sobre o significado emblemático da casa, o seu simbolismo não apenas afetivo e poético, a casa como um mar de lembranças, a alegria de chegar depois de uma longa viagem, resultou nesta crônica. José Paulo tornou-se uma referência no Brasil e em Portugal entre os que desafiam o mar infinito da vida e da obra do poeta português Fernando Pessoa. A mesma conversa comigo, o mesmo sentimento de retorno à sua casa da Rua da Aurora revela ter o jornalista Paulo Fernando Craveiro, ele que tem paixão e alma de viandante e peregrino do cotidiano poético.”No quarto branco dos brinquedos, no interior da casa, posso ver até hoje um polichinelo desagregado, pernas para um lado, braços para o outro. No quarto alaranjado, sonhos embarcavam no trem impossível que me levava à vida simples”. (Paulo Fernando Craveiro).

Gaston Bachelard, celebrado pelo que nos deu para a compreensão fenomenológica das imagens, confere ao tema uma das mais belas páginas. Ele via a casa como um recanto do mundo, um refúgio que abriga a memória, a imaginação, as emoções. Sua obra “La Poétique de l’Espace” (1958), analisa os lugares mais íntimos e generosos da casa (como porão, sótão, gavetas e armários) não apenas como estruturas físicas, mas como símbolos que moldam a nossa experiência interior. O autor sugere que espaços como o quarto podem ser entendidos como refúgios para a intimidade e a memória, para explorar a alma humana.

Veio-me à memória o quarto de Marcel Proust, um eterno doente de asma. O ambiente de refúgio faz parte da sua mitologia, tanto é assim que, em Paris, o Museu Carnavalet exibe uma réplica do aposento. O quarto era sua sala de visita, seu hábitat. Jean Cocteau, seu biógrafo, (foi um poeta, romancista, pintor e cineasta francês), nos traz imagens fortes do fantástico cômodo e do seu famoso habitante. “Ao contrário do que se pode ver no museu parisiense, não havia, evidentemente, qualquer arrumação. Forrado de uma cortiça acusticamente protetora (…), uma pilha de cadernos de escola e, como sobre os outros móveis, uma camada de poeira que não se espanava, o lustre coberto com lustrina, a mesa de ébano onde, na sombra, se empilham as fotografias de tempos vividos.”

Odisseu, o herói da “Odisseia” de Homero, e sua vontade inabalável de voltar para casa, não poderiam deixar de figurar nesta crônica. Ele passa 10 anos no desejo de voltar para sua casa após a Guerra de Troia, enfrentando diversas aventuras.

Em “Última canção do beco” presente na obra suprema de Manuel Bandeira:”Estrela da vida inteira”, um dos mais belos poemas do poeta pernambucano (cada releitura dessa poesia se alimenta de diversas fibras): “Vão demolir esta casa./ Mas meu quarto vai ficar,/ Não como forma imperfeita /Neste mundo de aparências:/Vai ficar na eternidade,/Com seus livros, com seus quadros,/Intacto, suspenso no ar!”

Na obra de Gilberto Freyre, escritor que volta a ser injustamente esquecido no Recife, a casa-grande representa o centro do poder patriarcal no Brasil colonial, simbolizando a elite, o controle econômico e a ordem social. “Ao estudar o homem e a casa, foi além de uma topoanálise, desde que estudou a casa não apenas sob o ângulo de visão obtido através da Psicologia, mas da Antropologia, da Sociologia, da História Social” (João Hélio Mendonça).

Na “Casa d'Irene”, uma das mais belas páginas do cancioneiro popular italiano, seja dia nublado ou noite fechada, “a tristeza não vai”.

*Jornalista

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