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Alícia: se calar diante disso é aceitar a barbárie

Alícia Valentina tinha apenas 11 anos.

João Carvalho

Publicado: 16/09/2025 às 11:43

Apesar dos esforços médicos, Alícia Valentina teve morte cerebral confirmada pelo HR nesta segunda-feira (8) /Reprodução/Redes sociais

Apesar dos esforços médicos, Alícia Valentina teve morte cerebral confirmada pelo HR nesta segunda-feira (8) (Reprodução/Redes sociais)

Alícia Valentina tinha apenas 11 anos. Uma criança. Estava na escola, lugar que deveria ser de proteção e aprendizado, quando foi espancada até a morte por colegas. O motivo: disse não a um menino que queria “ficar”, ter um envolvimento romântico com ela. Esse “não” foi transformado em uma sentença de morte. O resultado, um traumatismo craniano fatal. É revoltante perceber que, ainda na infância, já se manifesta de forma brutal a face mais cruel do machismo. O que esperar de uma sociedade onde meninos de 11 anos acreditam que têm direito sobre o corpo e a vontade de uma menina?


Entre 2001 e 2024, foram identificados 42 episódios de ataques violentos extremos em escolas brasileiras, segundo levantamento das pesquisadoras Cléo Garcia e Telma Vinha, da Universidade Estadual de Campinas (Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação). O caso fatal mais recente é justamente o de Alícia Valentina, que morreu depois de ser espancada por cinco colegas em uma escola pública de Belém do São Francisco, no Sertão de Pernambuco. De acordo com o boletim de ocorrência, a agressão aconteceu porque Alícia se recusou a ter um namoro com um dos agressores.
O que choca ainda mais é que, diferentemente da maioria das violências registradas em escolas, geralmente ligadas a bullying ou ataques planejados com outras motivações. Aqui o estopim foi um ato de machismo explícito.


A internet, com seus discursos de ódio e conteúdos que incentivam misoginia, racismo e homofobia, é frequentemente apontada como responsável. Na prática, funciona como combustível para comportamentos agressivos e preconceituosos. Mas precisamos ir além dessa explicação fácil. Onde estamos nós, adultos, diante desse cenário? Estamos de fato cumprindo nossa obrigação de formar cidadãos melhores, ou simplesmente transferindo a responsabilidade para a escola, para a tela do celular, para a nossa falta de cuidado?


Educar não é apenas ensinar matérias escolares. É formar caráter. É mostrar que ninguém tem direito sobre o corpo ou sobre a vontade do outro. É ensinar que frustração não se resolve com violência. Que ninguém deve morrer porque se negou a “ficar” com outra pessoa. Quando falhamos em transmitir esses valores, abrimos espaço para que a crueldade ocupe o lugar do diálogo e da convivência.


A morte de Alícia é um alerta que não podemos ignorar. Estamos criando uma geração incapaz de lidar com a rejeição? Estamos naturalizando a violência como forma de resolver conflitos desde cedo? Até onde vai a nossa omissão diante de notícias como essa, que lemos, lamentamos por alguns minutos e logo esquecemos? É cômodo responsabilizar apenas a internet ou “os outros”. Mas a verdade é que a mudança começa em cada casa, em cada sala de aula, em cada conversa com uma criança. E, quando não há pais, avós ou responsáveis presentes — seja por ausência ou tantos outros motivos sociais —, essa responsabilidade precisa ser compartilhada pela escola, pela comunidade, por todos nós.


Queremos um mundo sem homofobia, sem racismo, sem machismo, sem violência. Mas estamos realmente trabalhando por isso? Ou aceitamos, em silêncio, que esses comportamentos continuem? O caso de Alícia não pode ser tratado como “mais uma tragédia”. É um grito que exige ação. É a prova de que falhamos como sociedade, e de que, se não assumirmos a responsabilidade agora, mais crianças terão seus futuros roubados por uma barbárie que insiste em se normalizar.


A família de Alícia não terá de volta sua filha, e a dor desse vazio é irreparável. Mas nós, como sociedade, podemos e devemos transformar essa dor em aprendizado. A pergunta é: estamos dispostos a isso? Ou continuaremos a nos esconder atrás de desculpas enquanto a infância é assassinada diante dos nossos olhos? Não podemos mais aceitar o silêncio.

 

João Carvalho
Jornalista e mestrando em Ciências da Religião pela Unicap

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