A Poesia do cotidiano em tempos performáticos
Há algum tempo, uma pergunta vem ecoando em mim: em uma sociedade maníaca por performance, onde fica a poesia do cotidiano?
Publicado: 04/09/2025 às 11:23

O que reside por trás de uma dinâmica maníaca-performática é, muitas vezes, a tentativa de não acessar a própria angústia (Foto: Freepik)
Há algum tempo, uma pergunta vem ecoando em mim: em uma sociedade maníaca por performance, onde fica a poesia do cotidiano? Proponho, então, uma breve reflexão.
Numa manhã de quarta-feira, eu, psicóloga, mãe, mulher cis, branca, de classe média, rodeada de muitos privilégios, me percebi parada, observando meu filho de 4 anos, em um gesto simples, mas nem por isso menos significativo. Ele puxava seu banquinho para alcançar a pia, e o que poderia passar despercebido em uma manhã corrida me rendeu minutos de pura poesia e CONTEMPLAÇÃO. Ao vê-lo tão independente e seguro, emocionei-me, encantei-me, enchi-me de orgulho. Um gesto aparentemente banal me levou a importantes reflexões.
Logo me perguntei: onde fica o encantamento pelas poesias corriqueiras do dia a dia quando estamos todos correndo? Qual o reflexo dessa pressa constante em nós, e NAS NOSSA CRIANÇAS, que muitas vezes fazemos correr também, sem respeitar o tempo delas, sem notar a beleza das pequenas conquistas?
Certa vez, também numa manhã agitada, a filha de uma amiga surpreendeu-a com a seguinte frase: “Mãe, você precisa APRENDER a esperar o meu tempo.” Aproveitando esse importantíssimo exemplo, volto a me perguntar: onde fica o nosso próprio olhar carinhoso para as pequenas vitórias, os gestos simples, mas não menos importantes, do cotidiano?
Sou de uma geração que viu tudo mudar com a rápida chegada da internet em nossas vidas. Além disso, como psicóloga, escuto no consultório relatos que me deixam profundamente reflexiva e, como indivíduo também atravessada por essa mesma sociedade, carrego uma inquietação que, por vezes, parece solitária. O que estamos, afinal, buscando? E o que estamos PERDENDO ao nos forçarmos a ser multitarefas, a correr contra o tempo, a não dormir?
Do ponto de vista psicológico, os efeitos são muitos: indivíduos ansiosos, deprimidos, obsessivos por demonstrar vidas plenas e interessantes nas redes sociais, enquanto, na realidade, se sentem frustrados, têm dificuldades nos relacionamentos interpessoais e não estão verdadeiramente presentes para suas famílias, amigos e conquistas. Que corrida infinita é essa à qual nos submetemos?
Além disso, sob a ótica da psicanálise, cabe ressaltar que o que reside por trás de uma dinâmica maníaca-performática é, muitas vezes, a tentativa de não acessar a própria angústia, a própria dor. Sendo assim, quando o sujeito é constantemente convidado a performar, como temos visto nos dias atuais, ele se esconde por trás dessa máscara de eficiência, o que é preocupante, adoecedor e INSUSTENTÁVEL A LONGO PRAZO.
É bem verdade que o avanço da tecnologia trouxe praticidade a uma parcela privilegiada da população. Ainda assim, escolho, sempre que possível, estar atenta à beleza dos pequenos grandes gestos e, com o tempo do meu filho, aprender a contemplar a poesia que habita os detalhes do cotidiano. Por isso, mesmo remando contra a maré, sei que não perco nada. ESTOU, SIM, VIVENDO.
Priscilla Silva - Psicóloga Clínica na Entrelaces Psicologia. Especialista em Psicologia Clínica de orientação Psicanalista pela Unicamp e CPPL

