O Caso Felca e o limite da tolerância: Brasil x Big Techs
O Estado brasileiro não pode permanecer inerte diante do poder avassalador das plataformas digitais que hoje dominam os fluxos de informação, opinião e comportamento social
Sérgio Ricardo Araújo Rodrigues
Publicado: 15/08/2025 às 10:59

A regulação das redes, e especificamente das big techs (grandes empresas de tecnologia), tornou-se um imperativo jurídico, econômico e político inadiável (Foto: Freepik)
O Estado brasileiro não pode permanecer inerte diante do poder avassalador das plataformas digitais que hoje dominam os fluxos de informação, opinião e comportamento social. A regulação das redes, e especificamente das big techs (grandes empresas de tecnologia), tornou-se um imperativo jurídico, econômico e político inadiável. Juridicamente, porque a autorregulação demonstrou-se insuficiente diante do limitado arcabouço do Código Civil e do Marco Civil da Internet, que não resiste à lógica algorítmica capaz de amplificar violações de direitos fundamentais. Economicamente, porque o mercado digital concentra-se em poucos players com economias de escala e controle sobre grandes volumes de dados, criando barreiras quase intransponíveis à concorrência e a novos entrantes, prejudicando a inovação, os consumidores e os pequenos empreendedores. Politicamente, porque esse poder privado interfere no debate democrático, moldando narrativas, influenciando demandas sociais, agendas e até o comportamento do eleitor.
Algumas intervenções concretas podem ser citadas em nações onde as instituições são mais avançadas. Na União Europeia, o Digital Markets Act (DMA) e o Digital Services Act (DSA) enquadram as plataformas dominantes como “gatekeepers”, impondo limites à auto preferência e exigindo transparência nos mecanismos de recomendação. Nos Estados Unidos, a American Innovation and Choice Online Act (AICO) propõe coibir práticas anticompetitivas das big techs. Mesmo entre setores conservadores nos EUA, existem pessoas que defendem a regulação estadual da inteligência artificial, derrotando tentativas de impedir esse tipo de controle em nível federal. Na Índia, o comitê parlamentar de finanças recomendou uma regulação digital gradual e fundamentada em evidências, para enfrentar abusos das gigantes tecnológicas.
O Brasil, nesse contexto, atravessa um episódio que catalisou o debate. O vídeo do influenciador digital Felca — no qual denunciou práticas de “adultização” e sexualização de crianças por meio de conteúdo on-line — ultrapassou 40 milhões de visualizações e mobilizou amplos setores da sociedade e do poder público. Em resposta, múltiplos projetos de lei foram apresentados na Câmara dos Deputados com o objetivo de criminalizar e prevenir esse tipo de exploração. O presidente da Casa, Hugo Motta, anunciou prioridade na tramitação, e o governo federal sinalizou o envio de um texto regulatório abrangente para coibir crimes como pedofilia, tráfico de crianças, fraudes e exploração de menores no ambiente digital.
Acreditamos que essa regulação deve ir além da proteção infantil, alcançando toda a estrutura digital – limitação de auto preferência, transparência algorítmica, responsabilização ampla das plataformas (inclusive por conteúdo recomendado), fiscalização contínua e sanções efetivas. Não se trata de cercear a liberdade de expressão e sim de garanti-la em ambientes seguros, democráticos e plurais. Sem isso, permitimos que o lucro prevaleça sobre a dignidade humana, que os algoritmos explorem injustiças e que menores sejam transformados em mercadoria.
O Estado tem não apenas o direito, mas o dever de intervir para proteger direitos fundamentais e corrigir falhas de mercado, preservando o espaço público como bem comum. A concentração digital reduz a inovação e o poder de escolha. O caso Felca evidencia que o nosso momento exige coragem e ação, antes que a lógica do mercado e dos algoritmos determine o futuro de uma geração inteira.
Sérgio Ricardo Araújo Rodrigues é Advogado e Professor Universitário
Sandro Prado é economista e Professor Universitário

