Um clássico da literatura é metáfora atual
Angelo Castelo Branco
Membro da Academia Pernambucana de Letras
Publicado: 25/07/2025 às 00:00

O alienista (Divulgação)
Publicado em 1882, O Alienista é uma novela satírica escrita por Machado de Assis, que critica os excessos da ciência, do poder e da autoridade. O protagonista, Dr. Simão Bacamarte, é um médico que decide estudar as doenças mentais em sua cidade, Itaguaí, fundando o manicômio Casa Verde. Aos poucos, ele passa a internar quase todos os moradores, alegando que todos têm algum tipo de loucura.
A ironia é que, ao tentar definir a “normalidade”, Bacamarte acaba agindo de forma cada vez mais autoritária, isolando, perseguindo e classificando as pessoas com base em critérios subjetivos. No fim, o próprio médico se interna, achando que ele é o único são numa cidade de loucos.
Assim como em Itaguaí, temos uma tendência crescente de polarização, onde quem discorda de um lado é tratado como “delinquente”, “doente” ou “inimigo da pátria”. A sociedade acaba fragmentada, e o debate racional desaparece.
Machado de Assis escreveu uma crítica ao autoritarismo travestido de ciência e razão. Hoje, o Brasil enfrenta dilemas parecidos: o uso de leis, investigações e punições como ferramentas para moldar o comportamento e controlar o discurso.
Como Simão Bacamarte, alguns agentes do Estado acreditam estar promovendo a ordem — mas podem, na verdade, estar promovendo o medo, a injustiça e a censura. O Alienista nos lembra do perigo de dar poder demais a quem acredita que só ele sabe o que é “certo” ou “normal”.
E, assim como os rumos da sanidade em Itaguaí acabaram sendo decididos por critérios pessoais e não públicos, vivemos hoje um momento em que decisões de natureza política têm sido tomadas em ambientes herméticos, longe da soberania popular. A democracia só se sustenta quando seus conflitos são resolvidos no espaço que lhe é próprio: o das urnas eleitorais.
Não cabe a gabinetes fechados, por mais bem-intencionados que sejam, decidir o que é aceitável ou não no debate público. Em uma república, a legitimidade só pode vir do voto — direto, livre, consciente. Nenhuma medida, por mais justificável que pareça, terá força moral se não estiver respaldada pela manifestação clara e soberana da população.
O Brasil não precisa de novos “alienistas” decidindo quem pode ou não falar, quem pode ou não concorrer, quem pode ou não discordar. Precisa de instituições que respeitem o julgamento do povo e aceitem que, em democracia, o único juiz legítimo das ideias e das propostas é o eleitor.
Quando se censura antes do voto, quando se pune antes da escolha popular, o que se está fazendo é interditar o próprio coração da democracia. E uma democracia sem povo não passa de um teatro de sombras — como a Casa Verde de Itaguaí.

