O mundo está se tornando menos democrático?

Maurício Rands
Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford

Publicado em: 27/05/2019 03:00 Atualizado em: 26/05/2019 21:51

Diante das autocracias em ascensão mundo afora, aumenta a inquietação sobre o futuro da democracia. Michael Cohen, o ‘quebra-galho’ do presidente Trump por dez anos, vai ao Congresso, sob juramento. Conta práticas do seu ex-chefe que revelam o mais absoluto descaso com os valores e procedimentos da democracia. Qualifica de ‘canalha’, mentiroso e cínico o político eleito mais poderoso do mundo. O Brexit no Reino Unido suscita controvérsia sobre um dos instrumentos mais valiosos da democracia: o plebiscito. Depois da queda de dois primeiros ministros, discute-se a hipótese de nova consulta, há apenas dois anos da primeira. Convocar outro plebiscito significaria diminuir a validade democrática da primeira manifestação? No Brasil, as bolhas da rede social demitem o ministro Bebianno, revogam nomeações como a de Llona Szabo para o Conselho de Política Criminal e a de outros dirigentes de órgãos da administração federal. Induzem o presidente a cancelar os conselhos com participação de representantes da sociedade civil. Atacam instituições republicanas como o Congresso e o STF. Episódios que denotam descaso com um dos valores essenciais da democracia: o pluralismo. Ao tempo em que empoderam o populismo das redes sociais. O pluralismo bem se expressa em conselhos dos quais participem porta-vozes das várias opiniões existentes na sociedade. Quando o presidente cede às pressões das seitas nas redes sociais, desperdiça a pluralidade de visões que podem ajudar na definição das políticas públicas. Esses episódios preocupam também porque atribuem uma força direta a guetos ideológicas amplificados pelas redes sociais. Que impedem o governo de dialogar com outros segmentos e opiniões. Sofre a democracia com tal desapego aos seus elementos definidores.

Quando o mundo parece estar se tornando menos democrático, reemerge a necessidade de revisitar os valores. Porque a democracia pode ser vista como uma força moral. Que, portanto, baseia-se em valores que lhe dão força e viabilidade. É diante desta necessidade de fortalecer os valores da democracia que estão sendo publicadas várias obras de fôlego refletindo sobre o mal-estar da democracia atual. Discutem-se fenômenos como o populismo conservador antiglobalista, o populismo das redes sociais, o populismo de esquerda e as ‘autocracias democráticas’. O livro do professor James Miller, da New School de Nova York, ‘Can Democracy Work?’ (2018), reforça a importância dos valores numa época de crise da democracia.

A obra faz um apanhado das experiências democráticas iniciadas nos Séculos IV e V, na Grécia, sobretudo no período de Péricles. A democracia direta envolvia a deliberação, mas também a possibilidade de todos ocuparem os cargos públicos, em certos momentos através de simples revezamento. Passa pela experiência dos conselhos da Revolução Francesa e pelo projeto de constituição de Condorcet, a primeira proposta de democracia representativa. Que logo foi substituída pelo modelo jacobinista de Robespierre, mais centrado em mecanismos de democracia direta. E que, interpretando a ideia de Rousseau sobre a ‘vontade geral do povo’, permitiu que as minorias em controle das assembleias impusessem a sua vontade em nome daquela. Miller analisa como, em contraste, a Revolução Americana e sua Constituição de 1787 centraram-se desde o início nos mecanismos de democracia representativa. Embora com grandes contradições em relação ao princípio da igualdade em decorrência da exclusão de negros, pobres e mulheres. Depois, ele analisa as revoluções russas de 1905 e 1917, mostrando como o ideal de emancipação e autodeterminação democrática do povo acabou degenerando na autocracia do partido único. Que a busca pelo ideal democrático acaba negando-o quando os procedimentos que o viabilizam são abandonados em nome de instrumentos aparentemente de democracia direta. Seu mergulho na história da democracia culmina com o movimento ‘Ocuppy Wal Street’. Mostra como a luta contra a acumulação de riqueza em poucas mãos bilionárias, uma causa democrática e justa, terminou perdendo força por não ter logrado combinar os mecanismos de democracia direta com o funcionamento da democracia representativa. Fica o alerta de que novas formas de participação democrática direta continuam necessárias. Mas também o de que elas precisam se combinar com as instituições da democracia representativa. Não podem substitui-las. Esse último impulso, próprio das mais variadas manifestações de populismo, pode significar jogar fora o bebê com a água do banho.

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