Pertencer

Márcia Mª G. Alcoforado de Moraes
Professora Associado - Departamento de Economia/PIMES/PPGEC. Universidade Federal de Pernambuco.

Publicado em: 08/05/2019 03:00 Atualizado em:

Nesses tempos de obtusidade, ameaças às liberdades individuais e às humanidades, nada melhor do que recorrer aos verdadeiros filósofos. Popularizado por Sartre e Beauvoir, o existencialismo estruturou a ideia, já expressa na literatura clássica de Dostoievski, a partir da qual a liberdade não é uma dádiva, mas um fardo. O movimento considera o homem livre e responsável por definir a própria existência e admite sua angústia diante disso. Não por acaso, a psicologia analítica nomeia aqueles que se dispõem a usufruí-la, em busca do eu interior, de heroínas e heróis. A trilha, em geral, é iniciada de forma ingênua, quase inconsequente, pois a heroína-herói nem sabem o que procuram. O que os move é a dor de se sentirem inadequados e distantes do ambiente que os cercam. É certo que existe uma predisposição maior dos que têm perfil psicológico introvertido, em especial nos tempos atuais, nos quais a extroversão é exigida em currículos e tratada como uma habilidade a ser desenvolvida. Por isso, é preocupante a tendência atual de se eliminar o combustível dessa viagem, principalmente entre os mais jovens. A dor, ao invés de vivida e canalizada para as descobertas essenciais a se fazer, é sistematicamente classificada como patologia, associada a síndromes e tratada com drogas. Combinando-se a medicalização com as exigências que a vida adulta começa a impor, que vão do sucesso profissional à busca e formação de uma família idealizada e perfeita, não raro, a jornada da jovem heroína-herói nem chega a ser iniciada. Acontecimentos na vida adulta, tão diversos quanto comuns, - rupturas, perdas, a chegada dos filhos, a partida de um dos pais, divórcios, a adolescência dos filhos, a meia-idade -  podem trazê-la (a dor) de volta e, se tivermos sorte e coragem, fazer-nos reiniciar a jornada, na busca pelo essencial. Jane Fonda, em seu último livro, intitulado O melhor momento, nos fala a respeito da oportunidade que a geração dela está tendo de viver, em média, quase três décadas a mais do que as suas avós. Conclui que se trata de uma outra vida adulta e a chama de “terceiro ato”. Para ela, esse tempo deveria ser usado pelas pessoas, em especial pelas mulheres da sua geração, para revisitar o passado e entender os dois primeiros. Muitas se tornaram “os objetos das vidas de outras pessoas” para ser aceitas e pertencer; seja à própria família, seja à sociedade. No seu terceiro ato, Jane Fonda encoraja todas a voltar e reavaliar tudo: “encontrar finalmente a nós mesmas deve ser de valia não apenas para cada uma. Mulheres mais velhas são o maior grupo demográfico do mundo. Se nós pudermos voltar e nos redefinir nos tornando completas isso pode gerar uma mudança cultural no mundo e levar as novas gerações a se definir também.” A relação mãe e filha, a primordial entre mulheres, é, segundo os psicólogos, fundamental para a construção dos relacionamentos posteriores. Luciana Campelo considera que a mãe constrói a “função sentimento” na filha. De fato, Jung descreve, nas suas famosas experiências com associações, filhas muito jovens copiando o estado emocional da mãe, mesmo sem o ter vivido. O complexo materno, seja positivo ou negativo, é um dos mais poderosos e influentes na nossa psique, e o seu desligamento é necessário ao processo de individuação da filha. Muito vai depender da capacidade pessoal da menina, mas o papel da mãe é relevante. Caso a mãe tenha vivenciado e completado o seu próprio processo, facilitará: Se vive, deixará viver. Mães e mulheres que viveram suas vidas nos outros e através dos outros aceitaram o papel delegado para elas pela sociedade, mas, sem a própria personalidade desenvolvida, podem se identificar agora apenas com eles. Quando destituídas da função materna, não encontrarão sentido para a própria existência, dificultando, ao máximo, o desligamento da filha. Pertencer a uma família e, em especial, ter uma mãe que não abre espaço para a sua individuação é uma experiência de que poucas escapam. Construir a própria identidade é o único antídoto para encontrar um lugar no mundo, ainda que você não o tenha tido na sua própria casa. A sensação de encontrar a si mesma, mesmo que na meia-idade, faz com que possamos olhar para a frente pela primeira vez sem medo. Sob a “clara luz da maturidade”, enfim, tem-se a inebriante sensação de se ter direito à existência. Pertencemos, finalmente, não à sociedade ou a uma família que nos renega, mas ao meio ambiente, ao planeta e a todas as filhas que vivem e as que ainda virão. Pois, como mencionara Jung: “Uma parte da vida pode ter sido perdida, mas o sentido dela estará a salvo.”

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