Derramaram o gás

Gilberto Marques
Advogado criminalista

Publicado em: 07/05/2019 03:00 Atualizado em: 07/05/2019 08:34

O poder de polícia não se restringe aos atos incriminados. O Estado tem amplo espectro, em face da outorga que recebe da Nação. Todavia, é no campo do Direito Penal que se afirma com maior vigor. Tanto que pode, até, suprimir a liberdade – vamos parar por aí, que pena de morte é a morte do Direito.

A liberdade e a vida moram no mesmo endereço! A morte é hereditária. Quem nascer, verá!

O jurista Nelson Hungria, no Colóquio de Portugal, acerca da pena capital, em 1969, embora enfermo, gritou em pleno pulmão: “Dentro de cada um de nós existe um pequeno diabo. Mais ou menos necessitado de água benta!” Foi aplaudido de pé. Morreu logo em seguida, aconchegado pela família. Seu filho caçula, único advogado da prole, contava: nos estertores, meu pai nos disse: Vou contrariado. Ulisses Guimarães repetiu anos depois: Se me virem passar no caixão, saibam: ali vai um sujeito contrariado. O corpo sumiu. É doce morrer no mar.

O tipo penal da Legítima Defesa é universal e teve a sorte de se traduzir em bom português: Aplica-se a “quem repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.  

A legítima defesa vem de priscas eras: “Hoje sancionada por todas as legislações, foi reconhecida em todos os tempos e por todos os povos, consistindo em impedir pela força a violação injusta e iminente de um interesse tutelado”– Marcello Jardim Linhares.

Por conseguinte, não é preciso fazer qualquer alteração no texto. Injusta agressão... a direito seu ou de outrem. É pontual. Quer dizer, refere-se, eventualissimamente, inclusive, ao patrimônio. Como dizia Nelson Hungria. “...para defender-se contra o ataque dirigido ao seu interesse juridicamente tutelado, ainda quando este último seja, por exemplo, um simples interesse patrimonial.” – NH

No entanto, há um vácuo imponderável entre a propriedade e a vida, sem dúvida. Chico Xavier que me perdoe, mas a morte é definitiva. Não tem volta.

O Projetão, em curso no Congresso, dito de autoria do ex-juiz Sérgio Moro, arma os policiais, já armados, com o alvará de licença e funcionamento. A legítima defesa exige moderação; meios necessários (paridade nas armas); agressão injusta, atual ou iminente...

É claro que os soldados armados, treinados, preparados, protegidos, fardados, levam vantagem, em tese, na refrega hipotética. Todavia, não lhes cabe matar por matar. Entre o resultado morte e a defesa legítima há o olhar do Estado. A investigação por meio do Processo Crime é indispensável. Cabe ao juiz, com as garantias fundamentais, decidir se o fato comporta a exclusão criminal. A decisão de bate-pronto, no meio da rua, fica no faroeste americano, que dizimou nações inteiras de índios. Na evolução do Direito, até o xerife de Hollywood foi descartado.

O soldado escolhe ser soldado. O cidadão nasce com cidadania plena. Haja vista a luta contra a mortalidade infantil. Estimular a abertura das cartucheiras em vez de escolas fere o princípio natural de viver para morrer. Não pode servir de alça de mira. Vandré compôs, em tempos de chumbo: “Há soldados armados, amados ou não. Nos quartéis lhes ensinam antigas lições, de morrer pela pátria e viver sem razão”. Espero ressuscitar Darcy Ribeiro. Professores do Brasil, “acredito nas flores vencendo o canhão”. É o amor.

O Due Process Of Law – 1215 e a legítima defesa têm um encontro marcado. Apagar a luz? Nem pensar.

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