Da gripe Espanhola a Covid-19: as coberturas do Diario de Pernambuco nas grandes catástrofe sanitárias
Em pleno bicentenário do Diario de Pernambuco, vamos relembrar as crises sanitárias mundiais e regionais registradas pelo jornal mais antigo em circulação da América Latina
Publicado: 07/11/2025 às 00:36
Hemodialise em Caruaru - INUC. ( Leo Caldas/ARQUIVO/DP)
Ao longo dos seus 200 anos, o Diario de Pernambuco também testemunhou e registrou em suas mais de 63 mil edições, crises sanitárias que marcaram a história da humanidade.
Desde episódios globais como a Gripe Espanhola, que assolou o planeta no início do século XX, passando pela experiência recente da pandemia da Covid-19, a mais fatal de toda a idade contemporânea do planeta, até chegar em temas locais que mudaram o rumo da ciência, como a Tragédia da Hemodiálise e as centenas de crianças que nasceram com microcefalia, decorrente do Zika Vírus, o Diario de Pernambuco esteve presente, registrando e orientando todos aqueles que leem as páginas do jornal mais antigo em circulação da América Latina.
Diante de todo esse trabalho histórico e social desempenhado pelo Diario, vamos relembrar as coberturas dessas grandes crises sanitárias que marcaram e mudaram o rumo e a realidade da humanidade.
Gripe Espanhola
Apesar dos primeiros casos terem sido registrados em soldados estadunidenses, a censura promovida pelos países envolvidos na 1ª Guerra Mundial fez com a “nacionalidade” do vírus fosse espanhola, já que o país era neutro nos conflitos e noticiava constantemente casos desse vírus.
Os primeiros brasileiros acometidos e mortos pela Gripe Espanhola, também conhecida na época como “Influenza Hespanhola”, foram noticiados pelo Diario de Pernambuco em setembro de 1918. Com informações recebidas por meio de telégrafo diretamente do Rio de Janeiro, os primeiros infectados foram médicos que seguiam no vapor La Plata para França em missão militar para a 1ª Guerra Mundial.
Anterior a esses casos, a cobertura se baseava em informações vindas de países da Europa que, além de sofrerem com a primeira Grande Guerra, eram atingidos por casos da, até então, maior crise sanitária registrada no século XX.
Como na época o transporte de pessoas e mercadorias era feito por navios, foram os portos os principais epicentros de disseminação e entrada dessa doença no Brasil. Em Pernambuco, os primeiros casos foram registrados pelo Diario após entrevista com o então inspetor da Higiene do Estado, Dr. Abelardo Balthar, que classificou as ocorrências encontradas no vapor Piauhy, atracado no Porto do Recife, como “casos nada extraordinários”.
Essa declaração pode ser considerada precipitada para uma doença que matou, em média, mais de 34 mil brasileiros, segundo o historiador Alexandre Caetano da Silva, sendo registrado no Recife um número que pode passar de 3 mil, incluindo a morte do próprio inspetor. Com relação ao número de infectados, cerca de 120 mil pessoas ficaram doentes no Recife, cidade que tinha na época uma população de aproximadamente 220 mil habitantes.
Apesar do Diario tentar conter o alarde da população com notícias que destacavam a benignidade da doença, o medo da contaminação se alastrou à medida que a epidemia aumentava, fazendo com que a cidade do Recife praticamente parasse.
Aulas foram suspensas, atividades religiosas precisaram ser remarcadas, programações culturais e esportivas também foram adiadas, sem contar com a diminuição dos movimentos no centro e no comércio, proporcionando um “aspecto tristonho nas ruas da capital pernambucana”.
Em contraste, a movimentação nas farmácias aumentou significativamente, além dos hospitais que, para suprir a necessidade, chamavam médicos substitutos para os plantões e aumentavam o número de leitos, transformando até salão nobre das unidades de saúde em enfermaria.
Suspeitas em outras localidades do Brasil começaram a surgir após vapores saírem do Porto do Recife. Diante desses novos casos, o Diario utilizou correspondentes especiais nos estados do Pará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas para acompanhar de perto a evolução da doença.
“A imprensa foi fundamental para filtrar as informações e repassar da melhor forma possível para a população, funcionando como um mecanismo de divulgação de informações que ajudou na prevenção. Acho que não existia essa imprensa ativa, como existiu naquela época, o número de mortos seria maior”, ressaltou o professor titular do Departamento de Bioquímica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), José Luiz Lima.
Além das informações desses locais, o periódico passou a divulgar receitas caseiras de combate e prevenção da epidemia, como uso de enxofre na água, purgante viennens, entre outras soluções, que segundo José Luiz Lima, não tinham eficiência comprovada diante do pouco conhecimento dessa nova mutação viral.
“Na época não existiam as condições sanitárias bem definidas para que evitassem os contágios. A virologia e o estudo ambiental eram praticamente inexistentes. Com isso, posso afirmar que o vírus veio em um momento em que a ciência tinha pouca resposta para ele, por isso que tivemos milhões de óbitos”, destacou.
Com o passar do tempo, em meados de novembro, o contágio entrou em decadência, os postos de socorro de algumas localidades do Recife foram sendo fechados e a vida na capital pernambucana foi voltando ao normal.
Ao todo, segundo estudos de Alexandre Caetano, cerca de 40 milhões de pessoas chegaram a óbito com a Gripe Espanhola no mundo durante a epidemia de 1918, que, além de ceifar muitas vidas, mudou o cotidiano das pessoas, fator que voltaria a ser modificado com coronavírus.
Covid-19
Outro vírus que representou um choque de escala global e local foi a pandemia da Covid-19, que além de mudar a dinâmica social, modificou a forma como a imprensa faz cobertura científica e sanitária. Diante disso, o Diario de Pernambuco esteve mais uma vez na linha de frente dessa cobertura.
No início da pandemia, ainda em março de 2020, o Diario registrou que Pernambuco confirmou sua primeira morte pelo novo coronavírus, um idoso de 85 anos, morador da Zona Oeste do Recife, internado no Hospital Universitário Oswaldo Cruz (HUOC).
Naquele momento, o estado contava 46 casos confirmados, distribuídos em seis municípios, com hospitalizações e afastamentos domiciliares em curso.
Logo em abril de 2020, o Diario documentou que Pernambuco ultrapassou a marca de 1.000 casos confirmados e mais de 100 mortes pelo coronavírus. Segundo o boletim divulgado, o estado registrava 1.154 casos, dos quais 287 estavam internados (55 em UTI), e 102 óbitos já haviam sido confirmados.
Em 8 de maio, o jornal detalhou que em 45 dias o estado acumulava 927 mortes, números que, segundo a Secretaria de Saúde, já superavam óbitos de outras causas em 2018. A cobertura trouxe à tona a gravidade da situação, com relato de ocupação quase completa das UTIs, idades que variavam de 11 a 101 anos, e a presença de seis crianças entre as vítimas.
Ainda em 2020, no fim do ano, o Diario informou que em 10 de dezembro o estado confirmou 1.588 novos casos e 29 óbitos, com um total acumulado de 195.118 casos (28.465 graves + 166.653 leves) e 9.229 mortes no estado.
Avançando para março de 2021, o jornal apontou que em 18 de março Pernambuco registrou 2.139 novos casos de Covid-19, sendo 130 casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) e 2.009 leves.
O estado contabilizava 325.315 casos confirmados, distribuídos pelos 184 municípios e arquipélago de Fernando de Noronha, e 11.563 mortes pela doença. A matéria também especificou que 44 das vítimas tinham comorbidades como hipertensão, diabetes, doença cardiovascular ou respiratória. O jornal não apenas deu o número, mas humanizou por meio de perfis epidemiológicos, colaborando para a compreensão mais ampla da doença.
No ano de 2022 o Diario também manteve a cobertura com dados atualizados e foco na vacinação. Em 7 de fevereiro de 2022, o jornal divulgou que o estado registrou 1.562 novos casos da Covid-19, sendo 80 casos graves e 1.482 leves, acumulando 731.104 casos desde o início da pandemia, com 56.580 graves e 674.524 leves. As mortes no momento totalizavam 20.736.
Em 23 de maio de 2022 o Diario reportou que Pernambuco já havia aplicado 19.513.879 doses de vacinas contra a Covid-19 desde o início da campanha, em 18 de janeiro de 2021.
O estado totalizava 932.658 casos e 21.690 mortes pela doença. Em 23 de novembro de 2022, o jornal destacou que Pernambuco tinha cobertura vacinal de 79,8% da população com mais de 3 anos de idade até outubro, porém ainda abaixo da meta de 90% estabelecida pelo Ministério da Saúde.
Esses dados que o jornal trouxe de 2020 ao fim de 2022, mostram que o Diario de Pernambuco fez cobertura contínua, sistemática e local, atualizando a população sobre casos, mortes, vacinação, comorbidades, faixa etária, município.
A cobertura mostrou mais uma vez o papel da imprensa como serviço essencial, como bem lembrou o professor José Luiz Lima: “A imprensa foi essencial… Se não houvesse o trabalho de vocês, a desinformação teria causado um número muito maior de mortes.”
Em 21 de abril de 2025, o jornal noticiou que mais de 715 mil mortes pela Covid-19 haviam sido confirmadas no Brasil desde 1º de janeiro daquele ano, e que o Ministério da Saúde havia fechado compra de 57 milhões de doses de vacina. Já em setembro de 2025, o jornal relatou decisão judicial: o Estado de Pernambuco foi condenado a pagar R$ 10 mil a paciente cuja cirurgia oncológica eletiva fora adiada por conta da pandemia.
Tragédia da Hemodiálise
Apesar do quantitativo menor de vítimas envolvidas em relação às pandemias citadas anteriormente, a Tragédia da Hemodiálise em Caruaru, no Agreste de Pernambuco, tem um peso importante na cobertura das grandes catástrofes sanitárias, sendo considerada em 1996, segundo a presidente da Associação Britânica dos Pacientes Renais, Elizabeth Ward, o Holocausto Nefrológico.
A designação foi dada durante as investigações das quase 60 mortes de pessoas que faziam tratamento de hemodiálise na Instituição de Doenças Renais (IDR) de Caruaru. O primeiro óbito aconteceu no dia 20 de fevereiro, sendo registrado na sequência, em um intervalo de 20 dias, nove óbitos de pacientes da mesma clínica particular.
Diante do quantitativo de mortos, que com o passar do tempo aumentava cada vez mais, o Diario de Pernambuco enviou repórteres especiais para a Capital do Forró, sendo um deles o atual diretor de Redação, Ricardo Novelino, para acompanhar de perto o caso
.As coincidências dos falecimentos e o mistério sobre as causas, fez com que 126 pacientes que realizavam procedimento renais no IDR fossem transferidos para Garanhuns, Recife e outras unidades em Caruaru para continuar o tratamento renal apesar das infecções. Nos primeiros casos, foi identificado uma quantidade elevada de cloro no corpo das vítimas, levantando a suspeita de negligência no abastecimento de água do Instituto.
Após essa constatação, IDR e a Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa), responsável pelo fornecimento de água da clínica, que era feito por caminhões-pipa, se revezaram nas acusações de responsabilidade do quantitativo de cloro encontrado.
O Instituto também passou por vistoria da vigilância sanitária, na qual foi constatado uma quantidade de coliformes fecais na água utilizada nos tratamentos renais. Além disso, foram identificados reuso de materiais descartáveis, estruturas precárias, entre outros problemas que ajudaram na cassação do registro de funcionamento da clínica, que ocasionou no descredenciamento junto ao Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar dessas comprovações, o principal causador das contaminações ainda não tinha sido encontrado.
Além de um inquérito policial, a Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (ALEPE) abriu uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). A Organização Mundial da Saúde (OMS) e as universidades de Oxford e Londres, na Inglaterra, e Ohio e Nova York, nos Estados Unidos, também participaram do processo de apuração das mortes. O próprio ministro da Saúde na época, Adib Jatene, acompanhou de perto o caso.
A contabilização da décima morte mudou o rumo das investigações, pois não foi encontrado excesso de cloro no corpo da vítima, dando possibilidade de especulações. Suspeitas de leptospirose, contaminação da água com metais pesados e agrotóxicos provenientes de plantações próximas à Barragem de Tabocas, de onde vinha a água da clínica, foram levantadas.
Com o passar das investigações, o Diario de Pernambuco fez entrevistas com autoridades científicas, familiares das vítimas e com os próprios pacientes que, dias depois dos relatos, faleceram, principalmente por conta de hepatite tóxica.
Apesar do número de autoridades internacionais, foi a pesquisadora brasileira Sandra Feliciano Azevedo, coordenadora do curso de pós-graduação em Química de Produtos Naturais da Universidade Federal do Rio de Janeiro na época, que descobriu que as intoxicações eram provenientes das águas da Barragem de Taboca.
As mortes, reafirmada posteriormente pela universidade Ohio, nos Estados Unidos, eram provocadas pela toxina chamada microcistina, produzida por cianobactérias que são algas verde-azuladas presentes na água usada na hemodiálise, que provoca diversos problemas no sistema hepático e neurológico.
Apesar da luta das famílias em busca da melhora dos pacientes, o caso foi primeiro registrado no mundo de contaminação por cianobactérias em seres humanos através da água e se transformou em uma das maiores tragédias registrada em uma clínica de tratamento de hemodiálise. Esses títulos, mesmo sendo triste para Pernambuco, trouxe um aprendizado e um olhar mais atento sobre os cuidados com as águas que são usadas em clínicas.
“Um reflexo que ocorreu após esses casos em Caruaru, foi o aumento do cuidado e nas as águas que são usadas em clínicas. Algumas empresas que trabalham com sistema de água começaram a implementar um maior cuidado no tratamento, visando a prevenção de possíveis problemas”, destacou José Luiz Lima.
Zika Vírus / Microcefalia
Quando o mundo viu emergir a epidemia de Zika vírus em 2015, o Diario de Pernambuco esteve nas ruas, no hospital, nos lares, nas decisões públicas. No final de 2015, o Brasil enfrentou um inesperado salto no número de casos de microcefalia em recém-nascidos, ligado à infecção em gestantes pelo Zika vírus.
Em Pernambuco, o estado que serve de palco desta reportagem, o momento exigiu resposta ágil dos serviços de saúde e atenção da imprensa.
Em outubro de 2015 a abril de 2016, a cobertura do Diario de Pernambuco sobre a epidemia de Zika foi objeto de estudo acadêmico “Do alerta à ação: discursos sobre a epidemia do Zika no jornal Diario de Pernambuco” que analisou 210 títulos de notícias no portal do jornal nesse período.
Esse estudo revela que o jornal não apenas registrou dados, mas participou da construção discursiva do alerta identificando atores (médicas, mães, autoridades sanitárias) e efeitos de sentido (medo, prevenção, responsabilidade coletiva).
Em julho de 2016, o jornal informou que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) exigiu que planos de saúde passassem a cobrir três exames para detecção do Zika vírus PCR, IgM e IgG com prazo de um mês para adequação, e que a cobertura seria dirigida a gestantes, recém-nascidos de mães com diagnóstico e bebês com má-formação relacionada ao Zika.
O jornal também deu atenção à mobilização das escolas e das secretarias de saúde em matérias como “Ações contra dengue, zika e chikungunya são levadas para escolas da rede estadual”, publicada em abril de 2024, lembrando que o combate continuava, com educação como eixo central.
Em maio de 2025, o jornal publicou que, após anos de luta, famílias de crianças com microcefalia decorrente do Zika vetor seriam indenizadas: “Microcefalia: famílias serão indenizadas … nascidos entre 2015 e 2024, cuja deficiência tenha como causa o Zika Vírus, receberão R$ 60 mil em parcela única”. Também em 12 de agosto de 2025 o jornal informou que o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou pensão vitalícia para vítimas da síndrome congênita do Zika.
Ainda na entrevista concedida ao jornal, o professor José?Luiz?Lima, ressaltou que: “Durante o surto de Zika … a imprensa, nesse sentido, tem feito um trabalho importantíssimo. Reportagens, entrevistas com pesquisadores e secretarias de saúde ajudam a manter a sociedade em alerta.”
A cobertura do jornal no período Zika cumpriu vários papéis: Alerta precoce: ao acompanhar os primeiros sinais, por exemplo, o aumento abrupto de casos de microcefalia; Educação em saúde: informando sobre exames, diagnósticos, implicações para gestantes, medidas de prevenção (como eliminação de criadouros do mosquito); Cobrança institucional: ao relatar as políticas públicas, a atuação dos planos de saúde, as garantias legais que se impuseram (ex: cobertura de exames); Continuidade na agenda: mesmo após o pico da crise, o jornal manteve a pauta sobre arboviroses e prevenção nas escolas e comunidades.
Conforme o professor Lima lembrou, a investigação científica ainda busca respostas (por que algumas mães foram afetadas e outras não; que mecanismo neurológico o vírus ativa). O jornal, por sua vez, tem um desafio contínuo: manter acesa a vigilância, lembrar que “o número de casos de microcefalia voltou a um patamar de normalidade, mas não podemos afirmar que não possa voltar a ocorrer” palavras de Lima - e que a “educação, a imprensa e a ciência precisam andar juntos.”