Quem pode escrever o Brasil? A luta pela voz nas Academias de Letras
Academia Pernambucana de Letras (APL), criada apenas três anos depois como a terceira mais antiga do país, é testemunha de como essa exclusão se reproduziu nas esferas regionais
Publicado: 07/11/2025 às 00:28
A Academia Pernambucana de Letras irá distribuir 2000 livros em comemoração ao Dia Nacional do Escritor. Foto: APL/Divulgação ()
A diversidade de expressões e formas sempre esteve no coração da literatura brasileira. Do Quinhentismo ao Modernismo, cada movimento trouxe novos temas, linguagens e preocupações, revelando um país em constante transformação. Contudo, a pluralidade que hoje a caracteriza é de outra natureza. Emergem, com força inédita, grupos historicamente marginalizados como mulheres, negros, indígenas, LGBTQIAP+ e escritores de todas as regiões, permitindo que o Brasil, finalmente, se leia em toda a sua complexidade humana e social.
Entretanto, quando se direciona o olhar para as entidades que supostamente foram fundadas para ser as guardiãs dessa produção cultural, como a Academia Brasileira de Letras (ABL), não se vê um país completamente refletido em suas cadeiras. A sensação é que essas instituições ainda estão no capítulo anterior, enquanto a literatura já virou a página.
A defasagem não é casual, mas remete a um projeto que já nasceu excludente. Para compreendê-la em sua essência, é necessário recuar à gênese dessas instituições. Fundada em 20 de julho de 1897, a ABL surgiu com um propósito claro. “Havia a intenção de definir o que é o português do Brasil e, por extensão, reforçar a construção simbólica da nação”, explica a historiadora Joana Rosa. O caminho para isso, porém, foi a adoção do modelo europeu, que implantou um legado elitista e limitou a representatividade da Academia desde a raíz.
A própria Academia Pernambucana de Letras (APL), criada apenas três anos depois como a terceira mais antiga do país, é testemunha de como essa exclusão se reproduziu nas esferas regionais. Um exemplo é a não aceitação sistemática dos cordelistas, gênero fundamental da cultura pernambucana, que praticamente não encontrou representação na instituição. Os mestres Homero do Rêgo Barros e Ariano Suassuna se destacaram como raras exceções a essa regra. Já um expoente como o xilogravurista e poeta J. Borges, cuja obra se confunde com a alma do Nordeste, nunca foi eleito, mostrando que a verdadeira consagração habita o imaginário popular.
Diante deste histórico, a Academia hoje tem o desafio de integrar vozes e narrativas que permanecem à margem. Segundo Lourival Holanda, atual presidente da instituição, há um equilíbrio entre dois compromissos. “Em sua face mais suave, é uma casa que acolhe quem gosta, faz e vive literatura. Um espaço de criação e recriação de sonhos sociais. Em sua versão mais rigorosa, é guardiã do acervo das letras pernambucanas, preservando o que foi produzido de melhor em cada época”, diz. “Assim, vela por um inventário, por uma tradição, e oferece esse legado àqueles que desejam criar e reinventar a vida literária”, complementa o escritor, professor e filósofo.
Enquanto a APL consolidava seu espaço como instituição oficial, outra voz igualmente fundamental atuava no campo cultural: o Diario de Pernambuco. Presente desde a gênese dessas instituições, o jornal firmou-se como pilar na formação de opinião através do emblemático Suplemento Literário, criado em 1947 sob a edição do jornalista, poeta e cronista Mauro Mota. Mais do que um espaço de divulgação literária, o caderno dialogava diretamente com o papel da própria Academia ao construir, nas páginas do jornal, um campo simbólico de prestígio para autores pernambucanos no contexto de um mercado editorial concentrado no Sudeste.
Os registros do Diario dessa época, por sua vez, documentam o perfil de quem ocupava esses espaços. Em sua análise, a historiadora Joana Rosa observa que as matérias sobre as reuniões na Academia e na Faculdade de Direito do Recife, no fim do século 19, traziam, quase que exclusivamente, nomes masculinos em notas sobre comitês, palestras e encontros. “Esse padrão revela muito sobre o perfil das academias naquele período e sobre quem, de fato, tinha voz dentro delas”, aponta.
Em 11 de abril de 1920, o Diario noticiou que a educadora, escritora, jornalista e feminista Edwiges de Sá Pereira foi a primeira mulher a ingressar na APL, sendo a única dentre sete homens a ocupar uma das oito vagas. Sua eleição pioneira, porém, foi mais um prenúncio do que uma mudança efetiva. Um século depois, a dificuldade de instituições literárias em espelhar a pluralidade do Brasil revela que a luta por representatividade ainda é um capítulo inacabado.
Em mais de um século de existência, a ABL contou com apenas 13 mulheres e quatro pessoas negras entre seus imortais, sendo Ana Maria Gonçalves, a mais recente eleita, como a primeira mulher negra. Na APL, embora as 18 mulheres na atual composição representem um avanço, a instituição não possui um representante negro em seu quadro. Ainda assim, novas vozes continuam reivindicando espaço, rompendo com a tradição que por tanto tempo delimitou quem podia — e quem não podia — escrever as histórias do nosso país.