Lampião: o mito que nunca deixou as páginas do Diario de Pernambuco
Durante mais de uma década, o Diario registrou, com espanto e precisão, a ascensão e a queda de Lampião — o homem que virou lenda nas páginas do jornal mais antigo da América Latina.
Publicado: 07/11/2025 às 02:30
Cangaceiro Lampiao. (Arquivo/DP.)
Muito antes de o nome “Lampião” se tornar sinônimo de medo e lenda, o Diario de Pernambuco já acompanhava o avanço dos bandos cangaceiros que se espalharam pelos sertões de Pernambuco e Alagoas.
Em 17 de agosto de 1922, o jornal trazia uma extensa reportagem com o título “Um criminoso perverso”, descrevendo o assalto ao povoado de Pariconha, em Alagoas, e citando pela primeira vez o jovem Virgulino Lampião, natural do Riacho do Navio, em Floresta.
“Para fazer a agressão à casa de Gervásio Teixeira Lima, o desditoso e tantas vezes citado Antônio Mathilde reuniu um grupo em que se encontrava o indivíduo de nome Virgulino Lampião, natural do Riacho do Navio, neste Estado.”
Era o prenúncio de uma trajetória. O Diario apresentava Virgulino como “um tipo moreno, franzino e indiscutivelmente bravo”, mas também “de uma perversidade insólita, e tão acentuada que orça pela demência”. O texto refletia a visão moralizante e urbana da imprensa da época: um olhar de espanto e repulsa diante do sertão indomado.
Aos olhos do jornal, Lampião ainda era um facínora em ascensão, um nome entre tantos que ecoavam nos telegramas e relatórios policiais. Mas nas entrelinhas, já se desenhava o personagem que transcende a crônica policial para se tornar mito nacional.
As façanhas do bandoleiro
Em edições de 1931, o jornal trazia manchetes alarmadas: “As façanhas de Lampião no sertão de Pernambuco”, acompanhadas de relatos vindos de Belmonte, Vila Bela e Flores: “O grupo de cangaceiros, sob o comando do famigerado Virgulino Ferreira, mais conhecido por Lampião, tem praticado assaltos em fazendas, depredações em propriedades e até mesmo tiroteios com destacamentos volantes.”
O texto refletia o clima de terror nas vilas sertanejas, onde “a população vive em constante sobressalto, temendo a chegada do bando, que parece multiplicar-se”.
O jornal registrava também o descrédito popular nas forças policiais: “O povo sertanejo começa a descrer das providências oficiais, pois Lampião já se tornou um nome de temor e lenda, escapando sempre às perseguições e zombando das forças legais.”
A crônica era ao mesmo tempo denúncia e espelho. O Diario retratava um país dividido entre o poder do Estado e o poder do mito — um Brasil em que a notícia se confundia com o rumor e em que o Sertão ainda escapava à ordem central.
Os boatos da morte: o Diario e a disputa entre jornais
Em 14 de fevereiro de 1926, o Diario de Pernambuco estampou uma das manchetes mais comentadas de sua história: “A Morte de ‘Lampião’”. O país ainda mal conhecia o cangaceiro, e o jornal já noticiava sua suposta execução por forças policiais entre Custódia e Alagoa de Baixo.
O texto, grafado na ortografia da época, abria com solenidade:
“Desde a prisão de Antônio Silvino, só vem singularizando nos annazes do cangaceirismo do Nordeste a figura tristemente célebre de Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido pela antonomásia de ‘Lampião’.”
Mas o próprio jornal, fiel à sua tradição de cautela, alertava o leitor: “Infelizmente, porém, não há até agora confirmação oficial do fato.”
Era a primeira de muitas vezes em que o Diario teria de lidar com o desafio de apurar a morte de Lampião. Ao longo dos anos seguintes, reproduziu e questionou telegramas de outros jornais, incluído o Diário de Notícias da Bahia e o Jornal do Commercio do Recife, numa disputa editorial típica da era dos telégrafos.
Em 15 de julho de 1938, quando novos rumores sobre a morte de Lampião circularam pelo Nordeste, o Diario voltou ao tema com prudência: “Seria verdadeira a notícia da morte de ‘Lampião’? Não existe confirmação oficial, embora testemunhas oculares afirmam ter reconhecido o corpo do bandido.”
Essa postura crítica diferenciava o Diario de seus contemporâneos — mesmo reproduzindo informações de outros jornais, mantinha o tom analítico, evitando o sensacionalismo puro e mantendo a verificação dos fatos.
A confirmação: o fim de uma era
A certeza veio duas semanas depois. Na edição de 29 de julho de 1938, o Diario de Pernambuco trouxe em letras firmes a manchete definitiva: “Morreu ‘Lampião’. Foi apanhado de surpresa e morto com parte de seu bando pela força volante de Alagoas.”
O texto descrevia o ataque à fazenda de Angicos, no estado de Sergipe, travado ao amanhecer. Lampião e Maria Bonita foram surpreendidos enquanto dormiam e “não tiveram tempo de reagir com eficiência”. “Com a morte de Lampião, termina uma longa e sangrenta carreira de crimes, que durante anos desafiou as autoridades e levou o terror a vastas zonas do sertão.”
O jornal registrava os detalhes do combate, os nomes dos mortos e a repercussão pública:
“Os corpos foram levados para Piranhas, em Alagoas, onde o fato causou grande sensação. As cabeças dos mortos seguiram para Maceió, onde seriam expostas ao público como prova definitiva do feito.”
Era o encerramento de uma perseguição que durou quase vinte anos, e o marco simbólico do fim de uma era.
"Permanecendo a terra com as suas condições sociaes, não tardará que a Lampião morto succeda um novo Lampião". Luís de Athayde
O espetáculo da barbárie: as cabeças em Maceió
Em 1º de agosto de 1938, o Diario de Pernambuco publicou uma das reportagens mais importantes de sua história: “Dez mil pessoas estavam presentes à chegada das cabeças, em Maceió.”
A narrativa, extensa e detalhada, descreve o cortejo macabro: “O rosto de Lampião é descrito como sereno, largo, com uma brecha de bala no frontal esquerdo, beiço caído, nariz torto e cabelos na nuca. Foi reconhecido por todos os que o tinham visto anteriormente.”
O jornal relatava também os exames realizados pelos médicos legistas: “O cérebro foi retirado para exames científicos, e os olhos, marcados pela photophobia, explicam o uso constante dos óculos.”
A cobertura misturava ciência e espetáculo, horror e fascínio. A multidão se aglomerava nas ruas de Maceió para ver o mito tombado, e o Diario registrava, com minúcia e perplexidade, o nascimento de uma lenda imortal.
Do facínora ao símbolo
Após a confirmação da morte, o Diario de Pernambuco abriu espaço para reflexões. Em artigo intitulado “Lampeão morto; Lampeão posto”, o cronista Luís de Athayde escreveu:
“Lampião era um mytho. Protegido por amuletos e pela crença popular, tornara-se invencível. Mas era também um fructo do Nordeste, como o xique-xique e o mandacaru. Permanecendo a terra com as suas condições sociaes, não tardará que a Lampião morto succeda um novo Lampião.”
O texto de Athayde marcou uma inflexão na cobertura. O Diario deixava de apenas narrar crimes e perseguições para refletir sobre as causas sociais que produziam o cangaceirismo. Era o jornalismo ultrapassando o noticiário para enxergar o fenômeno, e assim, ajudando a construir a memória do sertão.
200 anos depois
Duzentos anos depois de sua fundação, o Diario de Pernambuco revisita suas próprias páginas para reencontrar o mito que atravessou o século. Nas colunas amareladas de 1922, 1926, 1931 e 1938, estão não apenas as marcas de uma cobertura histórica, mas também o retrato de um Brasil que ainda se debate entre o abandono e a resistência.
Se as primeiras manchetes anunciavam “a morte de um bandido”, as últimas testemunharam o fim de um símbolo. Mas o eco das palavras de Athayde permanece como profecia:
“Permanecendo a terra com as suas condições sociaes, não tardará que a Lampião morto succeda um novo Lampião.”