Uma doce história forjada na tradição
"Sem o açúcar, não se compreende o homem do Nordeste", já dizia Gilberto Freyre
Publicado: 07/11/2025 às 02:00
Bolo de rolo não é rocambole ( Annaclarice Almeida/Arquivo DP)
Um trecho ufanista de um frevo recente diz mais ou menos assim: “é só aqui que tem, é só aqui que há”. Até parece singela, mas a frase reflete um sentimento do pernambucano diante de um vasto cardápio de constatações da singularidade cultural expressa nas artes, na música e na culinária. Uma doce história forjada na tradição.
Aposte com qualquer outro e vai ganhar. Pernambuco reúne, a outrora “capitania que deu mais lucro”, uma tradição relatada e repetida à exaustão, quase loucura.
Difícil não se orgulhar do frevo e do maracatu, das igrejas e engenhos seculares, e de um quesito fundamental para entender a história das “Terras dos Altos Coqueiros”: o açúcar e tudo o que veio com ele. Um marco. O big-bang, onde tudo começou.
Realmente, é só aqui que tem, é só aqui que há, quando se fala em açúcar, doce e gastronomia. É Pernambuco falando para o mundo, com todo o respeito aos menos ufanistas.
Em um dos ensaios contidos no livro Crônicas do Cotidiano, publicado pelo Diario de Penambuco, o sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) revela o interesse em fazer um “mapa culinário do Brasil”.
O Mestre de Apipucos falava em traçar as linhas no mapa das principais tradições levadas às mesas dos brasileiros, em suas diferentes regiões: do churrasco “sangrento” gaúcho ao Barreado, do Paraná, passando pelo vatapá, da Bahia, ao Pitu, em Pernambuco.
No ensaio, Freyre cita que esse “guia” seria um “companheiro“ de seu livro “Açúcar”, de 1939. Na clássica publicação, o sociólogo mostrou uma verdadeira viagem pelos bolos de Pernambuco, suas receitas e, sobretudo, as referências sobre a região.
Ou seja, falou em “terroir”, um termo francês que define a extensão limitada de terra com características específicas de geografia, geologia e clima, muito antes de essa palavra ser usada por aqui.
Um livro que nasceu controverso, como lembrou o próprio autor, revelando como foi questionado pela sociedade “mais tradicional” da época: “Como um homem pode se interessar por receitas de bolo; cozinha é lugar de mulher”.
Em junho de 1975, ao falar sobre um relançamento do livro Açúcar, o Diario trazia um alerta de Freyre sobre os “riscos” do desaparecimento da tradição dos doces pernambucanos, diante da crescente industrialização.
Afinal, tradição é um dos pilares da ideia de mostrar as coisas de açúcar feitas em Pernambuco. Freyre resume a ideia da importância das receitas baseadas no “ouro branco”, como foi chamado o produto de exportação número um da colônia portuguesa, em seu primeiro ciclo econômico.
“Receitas que chegam até nós do tempo que sinhás dengosas negras escravas se orgulham de fazer doces difíceis para o regalo dos homens e delícia dos meninos”.
O açúcar
A comida é uma das bases para entender o Brasil. E o açúcar é fundamental para entender a formação do Nordeste e de Pernambuco.
Tanto que foi cunhada a frase “Pernambuco é de açúcar”. E tudo começa bem antes, lá no início de tudo, quando o século 16 ainda engatinhava e quando tudo aqui “era mato” e foi virando uma imensa plantação de cana.
O cultivo e exploração dos canaviais nordestinos deram a largada em 1535, com a posse do primeiro donatário Duarte Coelho Pereira. O solo favorecia as plantações, e a mão de obra era o trabalho escravo, de negros vindos da África, com a ajuda dos animais do campo.
Tudo junto e misturado. Até que Pernambuco se tornou “o maior produtor do planeta conhecido”, adocicando o paladar do “Velho Mundo”. E estava tudo lá, nos engenhos. Matéria-prima era o que não faltava.
O açúcar saído das moendas e as frutas, fartas nos pés, ao alcance das mãos. Em meio aos aromas das frutas, da fumaça dos fogões à lenha, e das adaptações feitas com os produtos nativos, em receitas vindas do além-mar, foi-se formando a doçaria pernambucana, nordestina e brasileira.
Origem de tudo
Para quem nunca parou para pensar, vai uma dica: açúcar vem do sânscrito. No entanto, os árabes deixaram o legado da palavra “as-sukkar”. Também foram eles que cunharam “ár-raçif”, denominado o mais importante porto açucareiro da América portuguesa, o Arrecife dos Navios, o Recife de Pernambuco.
Fácil né para entender né?
Foi por essas terras, justamente há quase 500 anos, que surgiu a chamada “civilização do açúcar”. Uma sociedade baseada na mão de obra de negros escravizados sobre os massapés da Zona da Mata. E tudo parte desse pinto. A amarga civilização escravagista do açúcar gerou a doce tradição culinária pernambucana. Voltando ao início de tudo, revelando “coisas que é só aqui que tem, é só aqui que há”.
Tradição e história
Nessa conjunção de fatores, a “sociedade do açúcar” vai criando uma tradição de bolos e doces bem específicos. Alguns deles com direito a “CPF”, nome e sobrenome:
Quem ouviu falar de algum lugar em que bolo se chama Souza Leão, Cavalcanti ou Luiz Felipe?
Pois bem, como já foi lembrado, em época em que poucos sabiam o que seria um “terroir”, as produções pernambucanas saíam das cozinhas com “certificados” e “selos de qualidade”.
“O bolo Souza Leão tem origem nos Enegenho São Bartolomeu, Noruega, o Jundiá e Batateiras” apontam teses de mestrado.
Exagerado, para dizer o mínimo, é um atentado a quem regula glicose e colesterol, nesse dia de obsessão por exames e laboratórios.
Massa de mandioca, leite de coco, manteiga, quase uma dúzia de ovos e, é claro, muito açúcar.
Menos famoso do que o Souza Leão, saiu de Pernambuco, conforme pesquisas de antigas receitas, o bolo Luiz Felipe, que levava Queijo do Reino.
Outra iguaria consumida aos borbotões por aqui e que fez uma mistura, hoje bem famosa na gastronomia internacional, de doce com salgado. Vale lembrar de outros bolos dessa farta mesa pernambucana e que impressionam até hoje quem é de fora.
Pernambuco tem um quitute para casamentos, denominado “bolo de noiva”, que só tem por essas bandas mesmo. Cada casa e cada doceira tem um “segredo”, mas a ideia se repete. Massa com doce de ameixa, açúcar mascavo, passas ao rum, vinho moscatel ou porto e especiarias. E, por cima, é óbvio. Muito glacê de açúcar. Uma camada grossa, quase uma pasta, para fuzilar qualquer dieta.
E por último, o mais famoso deles: o artista-solo da mesa pernambucana: o bolo de rolo. Aquela massa molhada intercalada com goiabada e enrolado em camadas finíssimas virou cult. É patrimônio imaterial e desejada por todos.
Não venha passar um dia por essas praias daqui sem levar um exemplar. Tem em todo canto. Uma unanimidade. Só não diga que é um rocambole.
Outros doces
Gilberto Freyre também dizia que dos engenhos da Zona da Mata pernambucana também se projetaram os doces conventuais e os doces portugueses que fizeram a fama da cozinha patriarcal, como o papo-de-anjo, sonhos-de-freira, suspiros, arrufos-de-sinhá, toucinho-do-céu, somente para citar alguns.
Aqui, açúcar pouco é bobagem. Quem toma caldo de cana e ainda come pão doce?
E pastel de carnes de boi e porco misturadas vem com a massa envolta em açúcar? Onde tem? Na casa de doces mais chique do Recife e em festa de criança.
E queijo de coalho com mel de engenho? E banana frita coberta com queijo de manteiga, canela e Açúcar. Isso aqui atende pelo nome de cartola e também está no cardápio com direito a dicionário típico.
E falando em dicionário típico da culinária, no Recife, uma massa fina enrolada feito canudinho é “cavaquinho”, vendido em cilindros metálicos e anunciado ao som do triângulo (sem sanfona). Doce puxa-puxa, de açúcar com fruta, é Japonês e vem no tabuleiro.
Variações sobre o mesmo tema. Coisas que só aqui que tem, com o rolete de cana. Pedaços da fruta em rodelas espetados em palitinhos de bambu. Vendia até na entrada de estádios de futebol. Lembrando até do poeta pernambucano Ascêncio Ferreira (1895- 1965), natural de Palmares, uma das terras de cana-de-açúcar. Ele escreveu: “Cana-caiana - cana-roxa - cana-fita - cada qual a mais bonita - todas boas de chupar…”
A história mostra que, em Pernambuco, o açúcar é sinônimo de gastronomia e cultura.
Vai além. Está na raiz da formação do povo, da economia e da política. Também na influência para toda a região. E para voltar mais uma vez ao início de tudo, relembrando Gilberto Freyre: “Sem o açúcar, não se compreende o homem do Nordeste”.