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200anos
EDUCAÇÃO

Paulo Freire e a educação que liberta

Formado pela Faculdade de Direito do Recife, o educador passou, em 1961, a realizar as primeiras experiências de alfabetização popular que levariam à constituição do Método Paulo Freire

Anna Dulce Neves

Publicado: 07/11/2025 às 00:05

Foto: Acervo Paulo Freire/Divulgação./

Foto: Acervo Paulo Freire/Divulgação. ()

“Eu não sou mais das massas. Eu pertenço ao povo, e eu tenho meus direitos. Senhor Presidente, nós precisamos de muitas coisas, tais como reforma agrária, uma escola, e eu peço a Vossa Excelência que faça respeitar as leis da Constituição”.

O pedido, feito em carta pela lavadeira Francisca de Andrade ao então Presidente da República João Goulart em junho de 1963, foi publicado pelo Diario de Pernambuco, em um texto que tratava sobre a implementação do método de alfabetização criado pelo educador recifense Paulo Freire em Angicos, no Rio Grande do Norte.

Na mesma matéria, foi contada a história de Maria Pequena de Souza, que, aos 32 anos, chorou de emoção ao escrever sua primeira palavra. “Quero, senhor, educar meus últimos filhos, que não posso deixar como estou”, escreveu ela a João Goulart.

Desde então, são incontáveis as vidas mudadas pelo trabalho de Paulo Reglus Neves Freire, nascido em 19 de setembro de 1921, em uma família de classe média. Durante a depressão de 1929, contudo, Paulo Freire vivenciou a pobreza e a fome – experiência que o fez olhar para os mais pobres.

Formado pela Faculdade de Direito do Recife, o educador passou, em 1961, a realizar as primeiras experiências de alfabetização popular que levariam à constituição do Método Paulo Freire, um conjunto de técnicas que visava não apenas ensinar a ler e escrever, mas transformar o ato de aprender em um processo de tomada de consciência e ação política.

“Tanto a leitura do mundo quanto a leitura da palavra, para Freire, se configuram como um direito. A leitura da palavra em si, por um direito ao acesso, à permanência na educação, mas a leitura de mundo, por um direito de ser cidadão, um direito de ser um sujeito histórico, um direito de ser alguém que critica, que compreende, que se coloca, que questiona”, explica Rozário Azevedo, professora, pesquisadora, mestra e doutora em Educação.

De acordo com a especialista, a coletividade era parte essencial da ideia de educação defendida pelo professor. “Freire tinha uma questão que é muito forte, de que a gente não se conscientiza só. A gente não problematiza, a gente não indaga o nosso presente de modo solitário. Ele acreditava muito na coletividade e na gente fazer esse processo de libertação, de tomada de consciência, uns com os outros”, afirma.

A trajetória de Freire

Nas páginas do Diario, chamadas como “O professor Paulo Freire foi aplicar em Sergipe seu método de alfabetização”, “Cariocas e paraibanos aprendem no Recife a formar alfabetizadores” e “Estudante de Goiás farão curso no Recife” deixavam claro o sucesso da criação de Paulo Freire, que ganhou também as manchetes internacionais.

O saber ler e escrever, distante da realidade de tantos à época, era tratado como a chave para a transformação dos grupos mais pobres em cidadãos ativos. A educação era, assim, o primeiro passo para a liberdade.

Essa ideia foi comprovada quando, durante a ditadura militar no Brasil, Paulo Freire foi encarcerado como traidor por 70 dias e teve seu material classificado como “subversivo”. Exilado, ele passou 15 anos fora do país, período durante o qual atuou como, dentre outras coisas, professor convidado da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, e consultor do Conselho Mundial das Igrejas, na Suíça, além de colaborar com autoridades de Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Angola, na África.

Em agosto de 1979, voltou ao Recife, disposto a continuar lutando pela educação. “Disse que pretende ensinar, pois, ao contrário de Almino Alfonso, que é um pedagogo porque é político, ele é um político porque é um pedagogo e, como pedagogo-político, quer continuar a ensinar, já tendo recebido dois convites: um de Campinas, outro da Universidade Católica de São Paulo. ‘Minhas netas querem que fique com elas em São Paulo, mas o fato de ficar no sul não quer dizer que esqueço as minhas raízes. Sou brasileiro precisamente porque sou pernambucano’”, escreveu o Diario na época.

Pelas décadas seguintes, Paulo Freire continuou a se dedicar ao que mais amava. Em 1981, passou a integrar o Partido dos Trabalhadores (PT), tornando-se o Presidente da 1ª Diretoria Executiva da Fundação Wilson Pinheiro, antecessora da Fundação Perseu Abramo.

Em 1989, foi nomeado secretário de Educação da cidade de São Paulo, cargo em que permaneceu até 1991, ano em que fundou o Instituto Paulo Freire. “Ele desejava reunir pessoas e instituições que, movidas pelos mesmos sonhos de uma educação humanizadora e transformadora, pudessem aprofundar suas reflexões, melhorar suas práticas e se fortalecer na luta pela construção de “um outro mundo possível””, diz o site da instituição.

Ensino público

Um ano antes da sua morte, em 1996, Paulo Freire conversou com o Diario de Pernambuco e deu sua opinião sobre a educação na época.

“Eu acho que o problema fundamental é a ausência de vontade política, ausência de decisão política, que vem caracterizando a realidade brasileira e a sociedade brasileira, desde que ela foi inventada. É preciso que haja a decisão política de enfrentar com seriedade, com rigorosidade, o problema da educação pública nesse país”, declarou na ocasião.

O educador não enxergava a privatização da educação como um caminho. Ao invés disso, lutava pela qualidade do ensino gratuito para todos: “A questão é que o Estado cumpra um dos seus desejos, que é o de oferecer escola em quantidade e em boa qualidade para a população do Brasil. E isso o Brasil nunca fez, a sociedade brasileira nunca fez. Então, é urgente que faça”.

Questionado sobre a raíz da falta de investimento no ensino público no Brasil, Freire disse acreditar numa relação entre o pouco dinheiro público injetado nas escolas e as pessoas que as frequentam.

“É interessante observar a coincidência entre o momento em que as classes populares emergentes começam a pressionar, no sentido de ter seus filhos também nas escolas públicas, a coincidência entre isso e o descaso do poder público. Em outras palavras, na medida em que as classes populares passaram a entrar em quantidade invisível nas escolas públicas, as escolas públicas começam a deteriorar-se um pouco. Não a deteriorar-se porque as classes populares deterioraram a escola pública, é que o poder público começa a desprestigiar sua própria escola e aí, então, a saída seria para a escola privada”, opinou.

“Eu acho que hoje uma das tarefas nossas de educadores e educadoras progressistas seria uma tarefa política e de uma briga pedagógica que não seja também uma briga política. A nossa grande briga deveria ser por uma escola pública séria, competente, feliz, contente e isso não se faz sem respeito aos educadores e educadoras”.

Para Rozário Azevedo, a luta mencionada por Freire segue em curso até os dias de hoje. “Essa ideia de se ensinar os direitos, de se construir uma consciência cidadã, é uma das frentes de batalha da educação dos educadores e das educadoras na atualidade. Então, as escolas, sim, seguem nessa tentativa”.

O uso da palavra “tentativa”, de acordo com ela, se deve ao “sistema fortemente organizado” para que os profissionais sejam dissuadidos do objetivo. Os educadores, no entanto, continuam prezando por uma construção “consciente, coletiva, mas, sobretudo, contextualizada”.

“A ideia de a gente ensinar na escola preza e passa pela questão de contextos. E, com isso, a gente vai estar provocando também as leituras do mundo. Então, é, sim, uma questão muito forte da educação na atualidade”, declarou a especialista.

A universidade

Na mesma conversa com o Diario, Paulo Freire falou sobre a relevância das universidades na formação de profissionais que garantam uma base sólida para as gerações futuras.

“Daí para mim a importância que certas universidades brasileiras já assumiram, a importância de que as universidades assumam responsabilidades grandes do ponto de vista da formação permanente das educadoras de base deste país. Em primeiro lugar, eu acho que uma universidade tem que ver diretamente com o seu contexto, com o contexto a que ela se liga e de que ela nasce, para que possa um dia também interferir nesse contexto. Não é possível que a universidade colabore no sentido de mudar o seu contexto, se ela não se relaciona organicamente com esse contexto”, disse.

Durante sua vida, Freire trabalhou ativamente para que isso se tornasse realidade. Em abril de 1962, esteve à frente da criação do Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade do Recife, atual Universidade Federal de Pernambuco, que tinha como objetivo “proporcionar a maior divulgação possível às realizações e empreendimentos universitários, bem como às iniciativas da Reitoria de apoio à intensificação da educação popular no Estado”, conforme publicou o Diario na época.

Nas páginas do jornal, a iniciativa foi aplaudida pelo escritor pernambucano Gilberto Freyre, que afirmou que, “só por meio de uma eficiente e sistemática extensão universitária” a Universidade do Recife se integraria “na vida da Cidade e nos problemas da Região, deixando de ser um conjunto exclusivamente acadêmico de atividades de todo fechadas ao resto do mundo, dentro das torres de suas escolas e das cúpulas de seus institutos”.

Atualmente, a quebra de barreiras entre a universidade e o mundo em que ela está inserida segue essencial, inclusive na formação de novos educadores e educadoras, que precisam, segundo Rozário, ter “muita clareza de quem são as pessoas com as quais vão conviver”.

“Antes mesmo das pessoas, que eles tenham clareza do seu próprio país, do seu lugar, das questões sociais, políticas, econômicas, em que a gente vive, no país, na cidade, no mundo, para que a gente possa entender que esse fazer não é descolado”, opina.

Nesse contexto, a especialista defende que a formação de professores não pode ser feita apenas dentro de uma sala de aula: “É importante que a gente crie processos formativos de professores que incluam a pesquisa, a problematização do conhecimento que está sendo estudado, que está sendo trazido. Os estágios entram aí como um lugar privilegiado, da gente poder confrontar essa teoria, da gente observar as práticas de outros docentes, de que se aprenda com aquilo, de que a gente possa discutir de modo ampliado”.

“A extensão também vai contribuir consideravelmente para esses processos formativos. A gente em contato com a sociedade, em contato com o campo da educação, na sua amplitude, porque a gente não pode falar em processo educativo e pensar só na escola”, acrescenta.

Rozário defende que, sem que essa reflexão crítica seja produzida, os educadores se distanciam “dos processos de emancipação, dos processos de equidade de direito, de inclusão, e isso é fundamental na prática docente”.

Como parte do seu trabalho no SEC, em maio de 1962, Paulo Freire anunciou o funcionamento, em fase experimental, da estação de rádio da Universidade do Recife, que hoje leva seu nome. A emissora foi inaugurada oficialmente em setembro de 1963.

“O programa inaugural da nova emissora, que será mantida pela Universidade do Recife, terá início às 20 horas, com a apresentação da estação pelo prof. José Laurênio de Melo, que estagiou durante dois anos na BBC de Londres. Falarão, em seguida, o reitor João Alfredo e o prof. Paulo Freire. Em seguida, será cumprida a seguinte programação: "Da valsa à bossa nova", "Homenagem a Villa-Lobos" e "Concerto" a cargo de professores e alunos do curso de música da Escola de Belas Artes”, noticiou o Diario então

Atualmente, a Rádio Paulo Freire tem como missão a formação profissional dos discentes dos cursos do Departamento de Comunicação Social (DCOM) do Campus Recife e do curso de Comunicação Social do Núcleo de Design e Comunicação do Centro Acadêmico do Agreste (CAA) da Universidade Federal de Pernambuco.

A educação e a tecnologia

Ainda em 1996, ano em que o DVD foi lançado, as portas USB inventadas e a ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado de uma célula adulta, nasceu, Paulo Freire discutiu com o Diario a forma com que o Brasil vinha lidando com os avanços tecnológicos, inclusive na área da educação.

“A tecnologia ou as revoluções tecnológicas não vão parar simplesmente porque os governos brasileiros não têm se preocupado em investir em educação para o povo brasileiro. Quer dizer, as revoluções tecnológicas não vão dizer, olha, vamos parar que em um ano nós esperamos que o povo brasileiro, o governo brasileiro, os governos brasileiros levem a sério isso”, declarou.

“De jeito nenhum vai haver essa coisa. Quem não entrar na luta para ficar tanto quanto possível em dia com os desafios que a tecnologia moderna apresenta, perde o bonde, o bonde da história. Eu acho que nós já temos perdido muitos bondes e não podemos estar perdendo mais”, acrescentou.

Quase 20 anos depois, a Inteligência Artificial (IA) avança em todas as frentes, a sustentabilidade digital segue sendo consolidada e a computação quântica e de sistemas inteligentes integrados avança de forma acelerada, e as preocupações de Freire ainda são válidas.

“A gente tem a possibilidade de perder o bonde de novo por várias razões. Desde a infraestrutura, o acesso à internet, isso ainda é uma coisa bem assustadora, ainda é alarmante. Nem todo mundo tem acesso à internet, a equipamentos ou forma de acessar tecnologia”, reflete Rozário Azevedo.

De acordo com a especialista, o que a população conhece como tecnologia dentro do campo da educação e das escolas não é nem um terço do que, de fato, vem sendo produzido. “O que a gente tem, e fica maravilhado, é muito pouco ainda”, afirma.

Além disso, na opinião de Rozário, o “bonde” citado por Freire pode ser perdido, também, do ponto de vista pedagógico.

“A gente não tem conseguido, seja por falta de formação, seja por falta de estrutura, favorecer que a tecnologia esteja a serviço de uma emancipação. A gente tem usado a tecnologia de forma muito utilitária. O uso de IA, por exemplo, acaba ficando muito limitado para usar padrão, para replicar modelo, e não para a gente questionar a própria tecnologia, questionar o mundo mesmo, como a gente vem fazendo uso da tecnologia. A gente vem passando ao largo dessas questões na educação”, declara.

Dentro das escolas, de acordo com a especialista, a tecnologia é consumida “de modo muito superficial ou de modo muito equivocado”. “Então, tanto do ponto de vista estrutural, quanto do ponto de vista da formação de professores, seja inicial, seja continuada, a gente não tem tido discussões potentes sobre a tecnologia. Talvez o risco de perder o bonde novamente passe por essas questões”, considera.

Quase duas décadas após a sua morte, a mensagem de Paulo Freire não se tornou obsoleta. Pelo contrário, as suas palavras permeiam o campo da educação até os dias de hoje, e devem continuar a fazê-lo por muitos anos ainda.

A presença de discussões tidas pela primeira vez há décadas atrás na sociedade contemporânea, contudo, não deve ser vista de forma desanimadora, mas sim usada como combustível em uma jornada rumo à dias melhores.

Afinal, como disse Paulo Freire, “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.

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