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Do Vale de Areia ao Porto Digital: a evolução da TI em Pernambuco

Sucesso do Porto Digital não foi obra do acaso, mas sim um projeto de longo prazo que transformou uma "fuga de cérebros" em um dos principais motores da economia do Nordeste

Pedro Ivo Bernardes

Publicado: 07/11/2025 às 00:12

Quem caminha hoje pelas ruas do Bairro do Recife, observando os casarões restaurados que abrigam laboratórios de tecnologia da informação de diversos nichos, de games à inteligência artificial, pode ter a impressão que o cluster tecnológico brotou espontaneamente. Mas quando se aprofunda e descobre a presença também de multinacionais como Stellantis, Accenture e Liferay tem a certeza de que algo diferente aconteceu ali.

Os números do Porto Digital justificam a fama de um dos maiores ecossistemas de tecnologia do país, reunindo 475 empresas, mais de 21 mil trabalhadores e um faturamento que, em 2024, atingiu a marca de R$ 6,2 bilhões.

Essa história, no entanto, não começou com a criação do Porto Digital, um ambiente de negócios que reuniu poder público (governo do estado), academia (Cin - UFPE) e iniciativa privada (empresas embarcadas). O polo tecnológico do Recife Antigo é, na verdade, o capítulo mais recente de uma jornada de mais de 40 anos, marcada por uma ambição pioneira, fracassos, excelência acadêmica e, finalmente, um planejamento de política pública que uniu o que parecia irreconciliável: governo, universidade e iniciativa privada.

VALE DA AREIA
Para entender melhor o Porto Digital, é preciso voltar à década de 1980, aos tempos do “Corisco”, muito antes de o Bairro do Recife ser sinônimo de inovação. Naqueles anos, o Brasil vivia o governo de João Baptista Figueiredo, o último presidente do regime militar que governou o Brasil por 20 anos. O país vivia também sob a égide da Política Nacional de Informática, a chamada "Reserva de Mercado", que visava desenvolver uma indústria de computação nacional para se contrapor às dificuldades de importação de muitos equipamentos..

Enquanto o eixo Rio-São Paulo concentrava os esforços industriais, surgia em Pernambuco o projeto do Corisco, primeiro microcomputador desenvolvido e fabricado no Nordeste. O Corisco nasceu da primeira interação bem-sucedida da "tríplice hélice". De um lado, o engenheiro e professor Rildo Pragana, do Departamento de Física da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), liderava pesquisas em microprocessadores. Do outro, o empresário José Belarmino Alcoforado, da Elógica Micro Sistemas, viu o potencial comercial daquele protótipo acadêmico. E por fim, a Política Nacional de Informática criava o ambiente propício para o empreendedorismo local.

Lançado em 1984, o Corisco foi um marco na história da informática em Pernambuco. Belarmino chegou a apelidar esse movimento de "Vale da Areia", uma ironia tropical ao "Vale do Silício" americano, que já dava passos largos nesse ambiente. Era uma proposta ambiciosa de criar, do nada, uma indústria de hardware relevante.

A Elógica e outras empresas da época lutaram para criar um polo de fabricação de um computador 100% pernambucano. Todas as peças eram produzidas localmente, por um conjunto de 12 empresas, em uma linha de montagem horizontal na qual a Elógica fazia a checagem final.

O CORISCO
O Corisco utilizava processadores de 8 Bits de última geração e era equipado com um terminal de vídeo compatível com o sistema da gigante IBM, grande fabricante de PCs naquela época. O microcomputador pernambucano era capaz de utilizar equipamentos como disquetes e impressoras, sendo atrativo para trabalhos de automação bancária, pagamentos e outras utilizações comerciais e industriais.

O PC pernambucano ganhou uma atualização com processador de 16 Bits, tornando-se compatível com o sistema operacional da Microsoft, e foi adotado por instituições como Banco do Estado de Pernambuco (BANDEPE), Cia de Petroquímica do Nordeste, Federação das Indústrias de Pernambuco, Instituto de Desenvolvimento de Pernambuco (Condepe) e Fundação Joaquim Nabuco. Até 1987, estima-se que cerca de mil coriscos funcionavam no estado.

A realidade, no entanto, se impôs. O fim da reserva de mercado nos anos 90, a abertura à concorrência internacional e as sucessivas crises econômicas tornaram a fabricação de hardware em larga escala no Nordeste uma atividade insustentável. O "Vale da Areia" não prosperou, mas deixou como legado a prova que Pernambuco tinha capacidade técnica e vocação para o setor de tecnologia, se não na produção de hardwares, na produção de softwares, como ficou provado com o Porto Digital.

FUGA DE CÉREBROS
Enquanto a Elógica fechava as portas, a UFPE, que já tinha criado seu mestrado em informática e a graduação, se consolidava como um dos mais respeitados centros de pesquisa em computação do Brasil, com o Centro de Informática (CIn).

O CIn-UFPE tornou-se uma "fábrica" de talentos de classe mundial, mas os mestres e doutores formados no Recife não encontravam oportunidades de trabalho locais que desafiassem suas capacidades. O destino era quase sempre o mesmo: São Paulo, Rio de Janeiro ou, mais comumente, o exterior. Pernambuco investia alto na formação de excelência apenas para exportar seus melhores profissionais.

Foi para estancar essa sangria que surgiu a segunda fase dessa história, com o CESAR (Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife), criado por um grupo de acadêmicos e alunos do CIn, liderados pelo professor Silvio Meira. Ele foi concebido como um instituto de inovação privado, sem fins lucrativos, com a missão de reter os talentos. O modelo era usar a excelência acadêmica para resolver problemas complexos de grandes clientes (como Motorola e Samsung, nos primeiros anos), gerando receita, experiência e, o mais importante, empregos de alta qualificação no Recife.

Com a chegada dos anos 2000, sem a ocorrência do tão temido “Bug do Milênio”, o Governo de Pernambuco se uniu aos esforços acadêmicos, criando o Porto Digital. O projeto de política pública, liderado pelo estado, cumpria uma dupla missão. A primeira era criar um ambiente de negócios favorável (com incentivos fiscais e infraestrutura) para atrair e fomentar empresas de Tecnologia da Informação (TIC) e Economia Criativa. A segunda era usar essa nova economia como vetor para recuperar o Bairro do Recife, um patrimônio histórico que estava degradado e abandonado.

O Porto Digital foi estruturado como uma Organização Social (OS), um modelo de gestão privada (o Núcleo de Gestão do Porto Digital - NGPD) que administra um projeto público. Isso deu ao parque a agilidade do mercado, essencial para dialogar com o setor de tecnologia, ao mesmo tempo em que mantinha o alinhamento com as políticas públicas.

NOVOS DESAFIOS
A evolução do Corisco até o Porto Digital mostra o amadurecimento de um setor que não se desenvolveu espontaneamente. Foi a partir da união entre governo, academia e iniciativa privada que o polo tornou-se um polo de inovação reconhecido internacionalmente, atraindo grandes players globais para instalarem seus centros de desenvolvimento no Recife.

O desenvolvimento, no entanto, traz um novo conjunto de desafios. O principal gargalo do Porto Digital hoje é o mesmo que motivou sua criação: capital humano. A demanda por profissionais qualificados é muito superior à capacidade de formação das universidades.

O ecossistema também carece de um maior amadurecimento das startups, para que sejam capazes de enxergar que a propriedade intelectual devidamente registrada aqui e no exterior é o maior dos capitais, que supera, e muito, os R$ 6,2 bilhões de faturamento anual.

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