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PERNAMBUCO ESCRAVOCRATA

Escravidão: da naturalidade na coisificação das pessoas às celebrações pela abolição

Por anos, as edições do Diario divulgaram anúncios de compra e aluguel de escravos. O jornal chegou a ter uma seção chamada "Escravos fugidos"

Jorge Cosme

Publicado: 07/11/2025 às 00:11

Um tem barba rala, é chamado de ladino (ou seja, “integrado à vivência brasileira”), sem vícios ou defeito. Outro é descrito como bem feito, alto, ainda sem bigode, forte e fiel. O terceiro é resumido como “de origem angolana”. Os três são homens à venda na edição número 1 do Diario de Pernambuco, de 7 de novembro de 1825.

Por anos, as edições do Diario divulgaram anúncios de compra e aluguel de escravos. O jornal chegou a ter uma seção chamada “Escravos fugidos”, em que os anunciantes ofereciam valores para quem encontrasse aqueles que eram de sua posse.

Segundo o professor Marcus J.M. de Carvalho, do Departamento de História e autor do livro "Liberdade: Rotinas e Rupturas do Escravismo no Recife, 1822-1850", o comércio de escravos, inclusive, em jornais, era algo tido como natural.

"Anúncios de escravos surpreende se a gente está assistindo de fora, do nosso tempo. A gente fica surpreso com a naturalidade daquilo. Mas era a coisa mais comum que havia no Brasil. Era um país escravista, que recebeu sozinho quase metade de todos os africanos que vieram da África para as Américas", ele diz.

"A escravidão é uma coisa sórdida e terrível, mas, nessa época, era naturalizada. Se uma pessoa era um escravo, era um infortúnio pessoal dela, mas aquilo era uma coisa socialmente aceita", explica.

No livro "O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século 19", o sociólogo Gilberto Freyre, cujos críticos questionam seu conceito de “democracia racial”, destaca que o Diario apareceu em 1825 como publicação destinada principalmente a colher anúncios comerciais. Ele avalia que não são poucos os brasileiros que possam se dizer "prováveis descendentes de escravos descritos em anúncios de jornais brasileiros do século 19".

"É natural que numa sociedade patriarcal e escravocrata como a nossa, no tempo do Reino e do Império, os anúncios de maior significação fossem os de escravos: compras, vendas, troca, aluguel, leilões e fugas”, reflete Freyre.

Os anúncios revelavam as condições em que viviam os escravos em Pernambuco. Enfermidades e deformidades, muitas vezes resultantes das condições de vida e de alimentação nas senzalas, eram expostas nos textos. Assim como as marcas das violências físicas. Na edição de 5 de maio de 1834, por exemplo, Miguel é um escravo fugido que tem pernas "zambas". Na edição de 14 de fevereiro de 1945, aparece José, de alcunha Caboclo, descrito como um magro que tem em cima da perna "uma grande cicatriz que nunca sara". Em 24 de setembro de 1830, o jornal tem um anúncio sobre dois jovens fugidos, ambos com "crôa na moleira de carregar areia".

Anos depois, em 6 de abril de 1870, há o anúncio sobre a fuga de Germano, de 17 para 18 anos, do Engenho Califórnia, em Sirinhaém. Ele fugiu com uma corrente no pescoço e carregava nas nádegas "marcas de castigo muito recente". O anunciante da fuga de Antônio, que tinha idade entre 20 e 22 anos, em 11 de abril de 1934, pede que as pessoas identifiquem o escravo pelas penas, que teriam marcas bem claras de feridas "por estar sempre nos ferros".

"Você encontra anúncios nos jornais de meninas jovens e que valem muito dinheiro, porque seriam uma ‘bonita figura’", exemplifica Carvalho. "Às vezes o cara dizia que ela era 'própria para o serviço de homem solteiro'. O cara comprava uma meninota para estuprar. Você transformava uma pessoa em uma não-pessoa".

Apesar da expressiva quantidade de anúncios, Carvalho lembra que o fundador do Diario, o tipógrafo Antonino José de Miranda Falcão ,era considerado liberal, que, entre outros posicionamentos, caracterizava-se por defender uma abolição mais rápida.

"Eram os liberais que diziam que a tendência era igualdade, então a escravidão tinha que acabar em algum momento", lembra o professor da UFPE. "Naquela época, ser liberal era ser de esquerda. Na linguagem de hoje, Miranda Falcão era um progressista".

GINGA
Em 5 de maio de 1860, o Diario chamou a atenção da polícia para os "bandos" de moleques em frente às bandas do 4º Batalhão de Artilharia e do Corpo da Guarda Nacional. Foi a primeira citação dos "capoeiras", expressão cultural que era realizada por escravos e hoje é patrimônio imaterial da humanidade.

SOCIEDADE SECRETA
Em 1833, anúncio de "popular de cor" defende no jornal a existência de uma sociedade secreta no Recife formada por negros libertos com família e contra a anarquia.

APREENSÃO DE NAVIO
Um navio carregado de escravos foi apreendido em Sirinhaém em 11 de outubro de 1855, conforme o Diario de Pernambuco. O ocorrido desencadeou uma crise diplomática com a Inglaterra que durou dois anos.

VENTRE LIVRE
Em 11 de outubro de 1871, o jornal reproduziu a lei que libertava filhos de escravos, apesar de deixá-los sob a tutela dos seus senhores até os 21 anos.

ABOLICIONISMO NO CEARÁ
Em janeiro de 1883, a vila de Acarape, no Ceará, libera todos os cativos. O jornal divulga o abolicionismo no estado cearense nas seções Interior e Publicações a pedido.

SEXAGENÁRIOS
O Diario também divulga que, em setembro de 1885, deputados e senadores discutem a aprovação da lei que libertava os escravos maiores de 60 anos.

ENFIM, A ABOLIÇÃO
A década de 1880 foi de intensificação da propaganda de abolição. No livro “Diario de Pernambuco: História e Jornal de Quinze Décadas”, Arnoldo Jambo conta que o jornal teve postura antiescravista mesmo com o fim da escravidão estando relacionado com interesses rurais.

Nas seções “Publicações a Pedido”, acolheu conteúdos tendentes a retardar a extinção total do regime escravista, mas como publicidade paga. A seção “inseria mais publicações de resistência à imediata abolição do que mesmo artigos abolicionistas”, escreve Jambo.

“A pena através da qual se discutiam maneiras e leis capazes de prorrogarem mais um pouco o trabalho escravo era a do jornalista Afonso de Albuquerque Melo, intransigente porta-voz dos senhores da terra e produtores agrícolas de então, todos eles com suas propriedades dependentes fundamentalmente do braço do negro cativo”, acrescenta.

Segundo Jambo, foi um período polêmico para o Diario porque “os abolicionistas cresciam cada vez mais em número e em condicionamentos favoráveis, quer do ponto de vista humanitário, quer até sob aspectos de ordem moral e política, até internacional”. O autor informa que, com a assinatura da lei Áurea, em maio de 1888, o “jornal libertário de 63 anos atrás reencontrou-se triunfante”.

“Em todas as suas edições do século não houve comemoração mais explosiva, mais contagiante, mais até ingenuamente calorosa”. Jambo destaca que a própria circulação do papel foi suspensa por regozijo. “Imprimiu um histórico caderno com o texto da Lei Áurea. Elaborou edição comemorativa e exclusiva sobre o Conselheiro João Alfredo, o pernambucano que presidiu o gabinete governamental do Império nos dias consagradores de que se tornou expoente humaníssimo a Princesa Isabel, cognominada a Redentora”.

“A direção do Diario, mandando fechar as portas do jornal naqueles dias, parecia fazer renascer o fastígio dos dias de integral comunhão com toda a gente”, diz no livro.

A notícia do decreto de abolição chegou ao Recife logo depois da aprovação pela Câmara, por telegrama recebido às 13h30, com o jornal divulgando um boletim. Às 23h, saiu segundo boletim, transcrevendo a mensagem da sanção da lei pela Princesa Isabel.

Conta Jambo que, em seguida, vieram as “festas da liberdade”. “Por alguns dias não se fez o jornal para o ‘resfolegar’ dos empregados - decerto alguns ex-cativos entre eles”.

HOJE
No último dia 6 de outubro, o Diario de Pernambuco divulgou que o Ministério do Trabalho e Emprego divulgou a inclusão de sete empresas pernambucanas na Lista Suja de combate ao trabalho análogo à escravidão. Somente em uma das empresas, 20 trabalhadores foram resgatados por estarem submetidos a condições degradantes no alojamento.

"Podemos dizer que a abolição da escravatura no Brasil, em 1888, representou mais uma medida política formal, que uma reestruturação social do nosso sistema produtivo", diz a vice-coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete) do MPT, Tatiana Bivar Simonetti.

"Infelizmente, nos últimos anos, o número de pessoas resgatadas de uma situação análoga à escravidão só aumenta. Uma triste e vergonhosa realidade", completa ela.

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