A literatura seria "o sorriso da sociedade"

Raimundo Carrero
Escritor e jornalista

Publicado em: 04/02/2019 03:00 Atualizado em: 04/02/2019 08:41

Não podia ser mais ridículo. E mais alienado, claro. No começo do século XX e, mais expressamente, no nascimento das nossas letras, a literatura seria “o sorriso da sociedade”, segundo expressão infeliz, retrógrada e feia do escritor Afrânio Peixoto, , até porque naquela época a literatura nos salões da grande elite, intocada e pura, tratada com luxo e lordeza para desgosto de escritores de verdade que não concordavam com o parnasianismo, com métrica e rima rica, sem lugar para o povo e suas dores.

Havia um tal escândalo em torno deste erro gravíssimo que este mesmo Afrânio Peixoto, autor de um romance ruim chamado “Bugrinha”; segundo conta a lenda, ridicularizado em sua imensa mediocridade terminou atirando no poeta Anibal Teophilo, hoje inteiramente desconhecido. Mesmo assim, Afrânio foi médico de méritos e muito elogiado burguesia reinante da época. Além de “Bugrinha” é autor de outros romances que receberam o absoluto desprezo de Lima Barreto, este sim um grande autor brasileiro.

Foi contra este clima sorridente que se insurgiu Lima Barreto, irritado com tanta mediocridade que, aliás, contaminava o Brasil e, em certo sentido ainda contamina muitos setores, onde proliferam os inspirados, aqueles que não conhecem a literatura feita pelo povo, ou que vem do povo. Na luta literária, Lima desmoralizou o diletantismo literário, conforme Francisco de Assis Barbosa, que escreveu a primeira grande biografia do escritor fluminense, desprezado por esta elite sorridente por ser gay, alcoólatra e negro, criador da verdadeira identidade literária brasileira.

Por tudo isso, e numa sociedade extremamente conservadora, Lima era preso por laço, até porque era considerado louco. Ele conta, em “Cemitério dos Vivos” – um dos livros mais dolorosos que li ao longo da vida-, que, numa dessas prisões, foi obrigado a lavar banheiros inteiramente sujos e sempre submetido à suprema humilhação, sem direito a reclamar. Numa situação tão dramática podia a literatura ser o sorriso da sociedade? A não ser por aqueles parnasianos que passavam a noite em clubes sociais, exibindo dotes poéticos, igualmente Parnasianos. Coelho Neto foi chamado de escritor nefasto quando foi proferir discursos poéticos na inauguração da piscina do a Fluminense, sempre considerado o clube da elite do estado do Rio.

A leitura do romance “Recordações do escrivão Isaias Caminha” é decisivo para que se compreenda este estágio da literatura brasileira, vivendo em estado azul dos poetinhas. Agora mesmo, este romance está sendo lido e examinado nas aulas da Oficina de Criação Literária, que aplico no Espinheiro. Este momento histórico exige nossa atenção redobrada e vigilante. Principalmente quando até o liquidificador passa a ser símbolo da estupidez nacional.

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