Aqueles ventres fecundos

Marcus Prado
Jornalista

Publicado em: 23/06/2018 03:00 Atualizado em: 25/06/2018 09:04

Há no livro, A Cidade Antiga, de Fuster de Coulanges, uma fonte confiável sobre as mais antigas crenças do mundo Grego, um comentário, rico em detalhes, segundo o qual havia um pacto, celebrado entre os deuses e os homens, que contemplava com honrarias perenes as “mulheres de ventre fértil”, mães de heróis, guerreiros e grandes benfeitores das cidades-estados. Mães não só de um filho, mas de outros da mesma casa e estirpe, continuadores de uma tradição mais tarde conhecida como dinastia. Encontramos essas mulheres à margem de quase todas as cidades da Grécia. Em Tebas e em Corintos estava essa lei ainda em vigor séculos depois. Elas ficavam dos deuses cativas. A saga dos Mann em Lübeck mostra um exemplo de mulher icônica: A brasileira de Paraty, Júlia da Silva Mann. A família Mann foi certamente a mais famosa família literária da Alemanha, constituída de intelectuais e escritores, artistas e jornalistas.

Três grandes biografias de Thomas Mann: a de Donald Prater (a melhor até hoje escrita sobre o autor de A Montanha Mágica,) a de autoria de Nigel Hamilton, a do pernambucano Vamireh Chacon, sem esquecer Terra Mater – a família de Thomas Mann e o Brasil, de Karl-Josef Kuschel, Frido Mann e Paulo Astor Soeth, destacam a fundação de uma dinastia de grandes vultos da inteligência e do saber, que se estende por três gerações, tendo como âmago germinador a brasileira de Paraty: Júlia da Silva Mann (1851-1922). Terra Mátria, é uma dessas maravilhas sobre a saga da família Mann numa Alemanha berço de geniais escritores. Aponta os encontros de Mann com Sérgio Buarque de Holanda, na Alemanha, em 1929, com Erico Verissimo, nos Estados Unidos, em 1941 (Verissimo conta a história no Gato Preto em Campo de Neve), e relata que o escritor ficou muito feliz com a informação de que o sociólogo Gilberto Freyre havia sugerido que a Academia Brasileira de Letras o convidasse a visitar o Brasil, mas a ABL ignorou, nada fez nesse sentido, os velhinhos “imortais” por certo nada sabiam sobre ele. Thomas Mann lia muito sobre o Brasil, empolgou-se com o elogio de Gilberto Freyre.

Júlia nasceu num país considerado exótico para os alemães daquela época, um país agrário-exportador e escravista. A presença estimuladora dessa mulher na vida dos seus filhos, netos e bisnetos, na Alemanha do início do século passado, até nos seus ramos mais novos, acha-se nas principais obras que os filhos escreveram e nos seus biógrafos. A começar por Thomas Mann (Nobel de Literatura/1929) e por Heinrich Mann (Prêmio Goethe/1942, o mais importante ainda hoje da Alemanha). Quando tornou-se mãe, embalaria seus filhos com cantigas folclóricas que aprendera com sua mucama negra Ana e com a mulata Leocádia, em Paraty, no casarão que ainda existe, infelizmente sem ocupação, cheio de buracos nas paredes e sem preservação. Cantigas que seriam lembradas para sempre, até poucos dias antes de sua morte.  Foi dessa mulher que os Mann herdaram o gosto pela literatura, pela música (ela tinha um piano de cauda Bechstein) dos grandes mestres do passado. Thomas Mann foi essencialmente escritor, mas seus profundos conhecimentos de óperas e sinfonias dos séculos 18 e 19 são de impressionar. (Devia seus vastos conhecimentos ao amigo e protetor, Theodor Adorno).

Filhos e netos diziam que, sem o legado espiritual dessa mulher e o estímulo, “com desvelo”, que dela receberam, “a história da família Mann seria contada de outra forma.” Julia cresceu e viveu na sociedade burguesa alemã na segunda parte do século 19 e tornou-se conhecida pela formação intelectual transmitida a seus filhos e netos, e foi nesta sociedade que construiu sua identidade como um grande vulto voltado para o mecenato cultural, a começar pelo esforço que desenvolvia nos meios editoriais da Alemanha, até nas livrarias, com vistas à qualidade de edição e distribuição dos livros de seus filhos. A vida dessa mulher foi inspiradora das obras de Heinrich, Klaus e Thomas Mann: a personagem Gerda Arnoldsen em Buddenbrocks, a Senadora Rodde em Doutor Fausto, a Mãe Consuelo, em Tônio Kröger e, finalmente, a mãe de Gustav Von Aschenbach, principal protagonista de Morte em Veneza; todos de autoria de Thomas Mann. Já Heinrich Mann, também autor do célebre romance, Professor Unrat (1904) – crônica ácida da hipócrita moral burguesa, da qual é personagem o mentor da bailarina em O Anjo Azul (1930), adaptada para o cinema por Josef Von Sternberg, protagonizada por Marlene Dietrich e suas belas pernas, contava que, sem os ensinamentos de sua mãe, de degrau em degrau, não teria alcançado as conquistas que tanto almejara. Quando o marido morre, Julia Mann, que se sentia engessada pelos rígidos costumes lubeckianos e amava música, dançar e escrever foi morar com os filhos em Munique, abrindo os salões para os artistas. Sua alma era de brasileira, até no seu jeito de sorrir. Colocava galhos de árvore em arranjos nos cabelos, foi quando escreveu o seu livro Lembranças da Infância de Dodô, um comovente relato dos felizes anos em Paraty.

Ventre fecundo, Júlia deu à luz cinco filhos: Heinrich, Thomas, Elisabeth Terese, Augusta e Viktor Mann, a Alemanha se curvava diante dessa dinastia.

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