Por um mundo não higienizado

Anco Márcio Tenório Vieira
Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE.

Publicado em: 27/02/2018 03:00 Atualizado em: 27/02/2018 04:28

A Cultura Moderna e as suas Manifestações Culturais (esse complexo conjunto de valores, crenças, costumes, ideologias, discursos, leis e gêneros artísticos que adquirimos, por meio de uma aprendizagem permanente de modelos e condutas, com maior ou menor distanciamento crítico) podem ser acusadas de tudo, menos de serem rios de águas claras, insípidas e inodoras que correm mansamente em direção ao mar. Ainda bem!

Sim, ainda bem que as suas águas são, por natureza, “sujas”. “Sujas“ no sentido de borradas, enodoadas e turvas. Afinal, Manifestações Culturais sobrevivem quando transigem e, por decorrência, se recriam; quando estão abertas ao contraditório, ao “outro”; quando vivenciam crenças e valores comuns a partir de perspectivas diversas, mesmo que isso implique variados graus de tensões e conflitos entre os grupos socioculturais envolvidos.

A defesa, como querem determinados grupos sociais e políticos, de uma cultura e de uma identidade “essencialista” (isto é, a crença “religiosa” de que existe um conjunto de valores autênticos, unificados e incorruptíveis que permanecem inalteráveis ao longo do tempo, definindo racialmente e culturalmente o “nós” dos “outros”), são discursos que, nas sociedades modernas, caracterizam o pensamento reacionário (em particular, as ideologias fascistas e nazistas). Grupos que para sobreviverem, se fecham em suas particularidades, em uma espécie de autofagia, alérgicos que são a quaisquer traços que caracterizem modos distintos de ver, ser e estar no mundo.

O discurso da higienização, que vem marcando o debate de ideias nos últimos anos, é parte dessa ideologia “essencialista”; de uma ideologia que pensa o mundo não pela ótica do “eu” e o “outro”, mas sim do “nós” (os bons e os puros) e os “outros” (os corrompidos, os heréticos). E para que esse “nós” se torne uma massa amorfa, homogênea, unificada, é necessário higienizar tudo aquilo que a macula. Foi assim que os nazistas convenceram os alemães (“nós”) que os judeus, ciganos e homossexuais (“outros”) enodoavam a “raça” alemã. E como todo tumor, eles precisavam ser extirpados.

Nos dias que correm, essa higienização se encontra nos discursos políticos e culturais tanto da direita (que confunde conservadorismo com reacionarismo) quanto da esquerda (que confunde stalinismo com democracia): seja na censura às manifestações artísticas (o que pode ou não ser visto, dito, lido, escrito e cantado, como se a arte devesse ser um comercial de margarina), ao vestuário (quem pode ou não usar determinadas roupas ou adereços, quais fantasias podem ou não ser usadas no Carnaval), aos hábitos alimentares (quais alimentos devem ou não ser ingeridos, pois comer determinados produtos revela a “superioridade” ou “inferioridade” moral de quem os consome) nos intercursos amorosos e étnicos (o interdito com o fim de preservar a “pureza” e as identidades “étnicas” e culturais de determinados grupos, pois a interpenetração entre etnias e culturas teria como fim macular e, por decorrência, promover o “genocídio” étnico-cultural) e, por fim, na tentativa de esvaziar o discurso do outro (dependendo do gênero, da etnia, da orientação sexual e da posição social de quem fala, seu pensamento e suas reflexões podem ser desconsiderados, censurados ou banidos, pois, agora, o “debate de ideias” só interessa enquanto espelhamento do “nós”).

E assim, pouco a pouco, as serpentes rompem as cascas dos ovos.

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