Premiação festeja o cinema brasileiro e pauta tensões do mundo
Maior festival de cinema do mundo premiou o Brasil em duas categorias na competição, e dividiu demais prêmios com coerência
André Guerra - Enviado especial
Publicado: 25/05/2025 às 19:50
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Atualizado: 25/05/2025 às 06:00

Kleber se tornou o segundo cineasta brasileiro a receber o prêmio de Direção, sendo o primeiro Glauber Rocha (por 'Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro') (MIGUEL MEDINA / AFP)
Era final de tarde na Riviera Francesa, horário de almoço no Brasil, quando começaram a ser divulgados, na cerimônia oficial no Grand Théatre Lumière, os premiados da competição principal do Festival de Cannes 2025 – que já nasceu um dos mais importantes para os brasileiros. O clima de copa do mundo que tomou conta do país na época do Oscar, com Ainda Estou Aqui, parecia ter, por um momento, retornado nas redes sociais. Sonhando com a almejada Palma de Ouro para O Agente Secreto, a torcida nacional teve seus desejos atendidos de forma surpreendente, com a vitória do longa pernambucano em duas categorias: Melhor Ator, para Wagner Moura, e Melhor Direção, para Kleber Mendonça Filho.
A presença da equipe brasileira no tapete vermelho da premiação já representou um bom sinal, já que as produções dos filmes são sempre avisadas pela organização do evento de que serão contempladas entre os troféus. É bastante raro, no entanto, o júri (presidido nesta edição pela atriz francesa Juliette Binoche) conceder mais de um prêmio para o mesmo projeto e, pelas regras, o vencedor da Palma de Ouro não pode levar nada além. Com o anúncio do nome de Wagner, portanto, todos já sabiam que a vitória máxima não estava mais no horizonte, mas poucos poderiam prever que Kleber subiria no palco novamente, desta vez para receber o seu próprio prêmio como realizador.
"Tive imensa sorte de trabalhar com Wagner e o amo muito. O Brasil é um país cheio de beleza e poesia e eu vejo Cannes como a catedral do cinema no planeta. Queria mandar um abraço para meu país, especialmente para Recife, Pernambuco", disse o cineasta em seu discurso de agradecimento.
Em Londres para a gravação de um novo filme, Wagner Moura gravou um vídeo para expressar sua euforia com o resultado da premiação. "A felicidade que eu tenho é por mim, pelo Kleber, pelo cinema brasileiro e pela cultura brasileira. E pelo fato desse filme ser mais uma peça que aproxima o espectador brasileiro de sua cultura, principalmente, isso me dá uma alegria imensa", celebrou o ator.
Além do ineditismo da dupla premiação para um longa brasileiro na competição de Cannes, O Agente Secreto levou ainda o prêmio da Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci), que reúne jornalistas e críticos internacionais. O thriller, que se passa no Recife de 1977 e acompanha um professor universitário tentando escapar de uma perseguição implacável durante o carnaval, foi um dos mais aplaudidos e elogiados pela imprensa internacional e, através de negociações do festival, garantiu distribuição nos Estados Unidos pela Neon, que representou todos os últimos seis vencedores da Palma de Ouro, além dos vencedores do Oscar de Melhor Filme Parasita e Anora.
O nosso cinema também seu momento de celebração na mostra Un Certain Regard ("Um Certo Olhar"), que contempla trabalhos de cineastas que estão surgindo no radar de Cannes. Premiado com o troféu de Atriz da competição paralela, para a cabo-verdiana Cleo Diára, O Riso e a Faca trata de um engenheiro (vivido por Sérgio Coragem) que viaja para a realização de um projeto rodoviário na África Ocidental e se envolve com dois locais, o brasileiro Gui (Jonathan Guilherme) e Diára, que também leva o nome da própria atriz. Elogiado pela sensibilidade e pela força das atuações, o filme tem mais de 30 profissionais do audiovisual nacional em sua complexa produção e tem previsão de chegar aos cinemas ainda em 2025.
PALMA DE OURO E DEMAIS PRÊMIOS
Estava difícil prever qual seria o grande vencedor da Palma de Ouro de 2025. O Agente Secreto era um dos mais cotados, mas grande escolhido pelo júri do Festival de Cannes foi o iraniano Um Simples Acidente, dirigido por Jafar Panahi, opção que vinha sendo apontada pela imprensa como uma das mais prováveis, por razões tanto fílmicas quanto exteriores a ele.
Gravado clandestinamente, como várias outras produções recentes que denunciam o regime do Irã, o filme que levou a Palma trata de um homem em busca de vingança contra o seu torturador, que ele convictamente acha reconheceu nas ruas do Teerã. O encontro, porém, abala essa convicção e, junto a outras vítimas de violência do estado, ele entra em uma jornada para tirar à limpo a verdade sobre a identidade do homem que acabou de sequestrar.
Esta foi a segunda produção iraniana a vencer a Palma de Ouro (28 anos após o diretor Abbas Kiarostami levar o prêmio por Gosto de Cereja), e a sua vitória foi também uma mensagem política do júri de Cannes. Jafar Panahi foi preso mais de uma vez por protestos contra o sistema do seu país e seu filme anterior, Sem Ursos, venceu o Prêmio Especial do Júri do Festival de Veneza de 2022, sem a sua presença. O lançamento ovacionado de Um Simples Acidente marcou a primeira vez que ele comparece a um festival com um filme desde que foi solto da última prisão.
As muitas qualidades do longa em si, que reúne várias das características marcantes do realizador (planos longos e com poucos movimentos, mistura precisa de humor absurdo com drama realista e a contextualização política sempre latente), também justificam a escolha de Juliette Binoche e do corpo de jurados, mas ficou evidente que a premiação quis valorizar toda a bagagem simbólica que o projeto de Panahi traz consigo.
O mais aplaudido nesta edição de Cannes, Sentimental Value, do norueguês Joaquim Trier, sobre uma complexa tentativa de reconexão de pai e filhas através do cinema, levou o Grand Prix, o equivalente ao segundo lugar. O fatalista suspense franco-espanhol Sirat, de Oliver Laxe, sobre um pai em busca da filha numa rave no Marrocos, e o contemplativo drama alemão Sound of Falling, de Mascha Schilinski, que segue quatro gerações de mulheres em uma triste casa na zona rural, dividiram o Prêmio do Júri, equivalente ao terceiro lugar.
O ambicioso e abstrato filme chinês Resurrection, de Bi Gan, conseguiu uma menção honrosa, o Prêmio Especial do Júri, enquanto o prêmio de Melhor Interpretação Feminina ficou com Nadia Melliti, do bonito drama francês La Petite Dernière. Figuras tarimbadas em Cannes, os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, fecham a lista de premiados levando a categoria de Melhor Roteiro com o filme Jeunes Mères, um dos menos comentados ao longo do festival.
Nos últimos anos, o festival vem sofrendo algumas críticas por uma excessiva interseção com o Oscar, inclusive com um alto número de filmes falados em inglês. Neste ano o júri não poderá ser acusado disso, já que, deliberadamente ou não, nenhum dos aguardados filmes hollywoodianos da seleção competitiva saiu premiado: Die, My Love, Eddington, The History of Sound, The Mastermind e O Esquema Fenício ficaram a ver navios — em um festival que conciliou o frevo da Croisette com a seriedade da produção iraniana.

