Mercado de São José: 150 anos de ferro, memória e resistência popular
Com arquitetura inspirada no Mercado de Grenelle, em Paris, o Mercado de São José é considerado o primeiro mercado público pré-fabricado em ferro do Brasil
No coração do Recife, um gigante de ferro fundido resiste ao tempo, às reformas e às tentativas de transformá-lo. O Mercado de São José, inaugurado em setembro de 1875, é mais que um centro comercial: é um patrimônio vivo da cidade, um espaço de memória afetiva, resistência cultural e identidade popular.
Com arquitetura inspirada no Mercado de Grenelle, em Paris, o São José é considerado o primeiro mercado público pré-fabricado em ferro do Brasil. Seu projeto teve a assinatura técnica do engenheiro francês Louis Léger Vauthier, conhecido por outras obras emblemáticas no Recife, como o Teatro de Santa Isabel.
"O mercado de São José é um dos maiores exemplos da influência europeia no processo de modernização do Recife no século XIX",afirma o historiador Artur Garcéa. "Ele foi pensado como parte de um projeto de higienização e reorganização urbana, um verdadeiro símbolo da tentativa de transformar a cidade em uma capital moderna nos moldes de Paris."
Do Terreno dos Coqueiros ao coração comercial do Recife
Antes da imponência metálica, o espaço que hoje abriga o mercado era conhecido como Terreno dos Coqueiros e, mais tarde, Ribeira dos Peixes. Desde o século XVII, já era palco de intensas trocas comerciais, com vendedores de frutas, verduras e peixes. Em 1655, o terreno foi doado aos padres capuchinhos por Belchior Alves Camelo e Joana Bezerra.
Durante o século XIX, o Recife vivia uma explosão urbana, impulsionada por políticas de saneamento, reformas estruturais e preocupação com a saúde pública, especialmente após a devastadora epidemia de febre amarela de 1849. Foi nesse contexto que surgiu a necessidade de criar um mercado que centralizasse e regulamentasse a venda de alimentos, afastando o comércio ambulante das ruas.
O Mercado de São José foi, desde o início, um equipamento pensado para atender às elites políticas e econômicas, mas logo foi apropriado pela cultura popular recifense.
Ao longo dos seus quase 150 anos, o Mercado de São José passou por inúmeras reformas. A primeira, em 1906, trouxe melhorias como banheiros públicos, uma novidade para a época. Em 1941, as antigas venezianas de madeira foram substituídas por combogós de cimento.
O episódio mais traumático foi o incêndio de 1989, que destruiu parte da estrutura. Durante quase cinco anos, o mercado permaneceu fechado para obras de recuperação. Quando reabriu, em 1994, o São José ganhou novos anexos e espaços para alimentação. Mas também passou a conviver com uma questão delicada.
"Cada intervenção traz consigo um risco: o de descaracterizar um espaço que é, por natureza, múltiplo, dinâmico e profundamente popular", avalia a historiadora Vanessa Sial. "O Mercado de São José não é só um prédio. É um organismo social e cultural vivo.”
O atual projeto de requalificação, coordenado pela Prefeitura do Recife dentro do programa Recentro, prevê investimentos de aproximadamente R$ 24 milhões. A proposta inclui a recuperação estrutural, modernização das instalações elétricas e hidráulicas, além de mudanças na organização interna dos comerciantes. Entre as medidas mais polêmicas está a retirada das barracas de comida da fachada principal e a realocação de vendedores para o mezanino.
Segundo a gestão municipal, as alterações visam recuperar o traço arquitetônico original do mercado.
Quem caminha hoje pelos corredores do mercado sente a mistura de cheiros, cores e sons que marcaram gerações. Ali, famílias inteiras compram o peixe da Semana Santa, os temperos para a feijoada, as velas para promessas religiosas e lembranças artesanais para presentear.
"O São José é mais que um ponto de comércio. É um espaço de memória coletiva", reforça Vanessa Sial. "Quando pensamos no futuro do mercado, precisamos lembrar que ele guarda a história de milhares de pessoas que passaram e passam por ali todos os dias. Ele é um espaço de afeto, de luta e de resistência cultural."
O futuro está em obras. Mas o passado, esse, continuará sempre ecoando entre as vigas de ferro e os gritos de oferta.