CINEMA

As memórias de um olhar

Novo filme de Marcelo Gomes, 'Retrato de um certo Oriente' adapta romance aclamado de Milton Hatoum em um preto e branco simultaneamente épico e contemplativo

Publicado em: 15/06/2024 06:00 | Atualizado em: 15/06/2024 08:53

 (Exibição no 13º Olhar de Cinema foi a estreia nacional do longa, que será lançado comercialmente ainda em 2024. Divulgação)
Exibição no 13º Olhar de Cinema foi a estreia nacional do longa, que será lançado comercialmente ainda em 2024. Divulgação
O desejo de conhecer e entender a visão estrangeira de quem chega ao Brasil é um dos pontos de partida do longa Retrato de um certo Oriente, do pernambucano Marcelo Gomes (Cinema, aspirinas e urubus e Estou me guardando para quando o carnaval chegar), escolhido para abrir o 13º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, que segue sua programação até 20 de junho. Inspirado no romance do amazonense Milton Hatoum, de nome ligeiramente diferente – "Relato de um certo Oriente" – e publicado em 1989, o filme conta a história de irmãos católicos libaneses, Emilie (Wafa'a Celine Halawi) e Emir (Zakaria Kaakour), que seguem viagem rumo ao Brasil para escapar do momento de conflitos sociopolíticos de seu país. Durante o trajeto para Manaus, eles conhecem o comerciante árabe Omar (Charbel Kamel), com quem Emilie começa um romance que tem em seu irmão o principal obstáculo.

Ciúmes intensificados – ou disfarçados – por preconceito religiosos, relações entre distintas culturas e aprendizados da língua portuguesa estão entre as questões trazidas pelo projeto, que, através de um preto e branco poético e cheio de referências clássicas, imprime um caráter mais linear a uma história que, no romance, é descrita pelo próprio autor como “infilmável”. Curiosamente, a adaptação mantém um espírito de forte subjetividade, através de fusões, da fotografia suntuosa e contemplativa da Amazônia, da espontaneidade de algumas conversas com personagens que surgem pelo caminho e, em destaque, pelo imersivo e às vezes turbulento trabalho sonoro. 

Cineasta que já explorou em outros trabalhos, sobretudo em Cinema, aspirinas e urubus, os atritos e belezas da descoberta entre diferentes olhares, Marcelo Gomes começou a produção de Retrato de um certo Oriente no início de 2020, mas, devido à pandemia, teve que paralisar a produção à época. Mesmo com as dificuldades práticas e desafios criativos, o diretor dá um passo além dentro da sua carreira ao comandar cenas profundamente íntimas e pessoais faladas em árabe. Os closes intensos nos atores e as composições noturnas evocativas da floresta ajudam na sensorialidade proposta pela obra, que, frequentemente, fala menos pelo texto e mais pelas imagens.

“O que mais me fascinou no livro foi imaginar o olhar dessas pessoas que vieram do Oriente Médio, do mundo árabe, de um lugar desértico que tem outra história, chegando à Amazônia, que Milton muito bem define como a última página do Gênesis. Depois, me interessava muito esse encontro radical de alteridade entre mulçumanos e cristão, e ainda a cultura do próprio Amazonas. Fiquei imaginando como foi o primeiro encontro da Emilie com a Anastásia [personagem vivida por Rosa Peixoto], por exemplo. No momento que o mundo vive, principalmente, eu acho o tema da alteridade muito importante: é a forma de você desconstruir preconceitos e qualquer tipo de reação ruim ao que é diferente”, afirmou Marcelo Gomes durante a coletiva de imprensa do Olhar de Cinema. “E a questão da fotografia, que a certa altura vai ser central na história, e da memória também foram determinantes para mim. Uma das primeiras frases do livro diz que ‘a vida começa verdadeiramente com a memória’, então a fotografia que guarda esse passado foi essencial para a adaptação”, lembrou.

“Muitos escritores americanos escrevem romances para serem filmados, quase como roteiros mesmo. Já eu nunca pensei nisso, pelas questões psicológicas dos personagens, da memória. E no Relato, que foi meu primeiro romance, eu queria uma história intimista em que a memória faz seu trabalho evocativo narrado por uma mulher, que conta seus encontros com personagens, e montei essa veia de vozes em que não há registros da voz de quem fala, e daí a dificuldade do leitor em identificar essa voz narradora”, destacou Milton Hatoum sobre a sua obra. “É um livro muito concentrado dentro do espaço fechado da casa da personagem e Marcelo foi muito feliz em uma abordagem bem literária e épica, com o mar e o navio. Os grandes épicos giram em torno de viagem, amor, morte e memória, e ele trouxe em imagens tudo isso”, completou o escritor.

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