RIO GRANDE DO SUL

Água adoece vítimas de tragédias naturais mesmo após enchentes

Regiões afetadas por inundações apresentam aumento significativo de doenças infecciosas mesmo após o fim da enchente, diz estudo. Pesquisa mostra o pico da mortalidade até 60 dias depois da expostas à contaminação

Publicado em: 23/05/2024 09:40 | Atualizado em: 23/05/2024 09:44

Populações de cidades vizinhas a rios, como Porto Alegre, têm risco 62% de sofrem doenças gastrointestinais devido ao transbordamento de esgoto  (Crédito: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini)
Populações de cidades vizinhas a rios, como Porto Alegre, têm risco 62% de sofrem doenças gastrointestinais devido ao transbordamento de esgoto (Crédito: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini)

Doenças infecciosas podem aumentar ainda mais o drama dos desabrigados pelas enchentes no Rio Grande do Sul. Um estudo da Universidade de Boston, nos Estados Unidos, divulgado ontem na revista Environmental Health Perspectives, mostrou que, passado o transbordamento da água do esgoto, moradores correm risco elevado de enfermidades gastrointestinais causadas por microrganismos como rotavírus, E. coli, Salmonella e Vibrio cholerae. Outra pesquisa, da Universidade de Monash, na Austrália, encontrou um pico na taxa de mortalidade por todas as causas até 60 dias depois da exposição às inundações.

 

A pesquisa norte-americana concentrou-se nas comunidades de Massachusetts, que fazem fronteira com o Rio Merrimack, e têm sido, frequentemente, afetadas por enchentes e transbordamento de esgoto. As descobertas, porém se aplicam a outras localidades expostas a um grande volume de precipitação, como ocorre no estado brasileiro.

 

"As maiores liberações de esgoto ocorrem quando a precipitação é mais intensa, pois isso produz uma abundância de chuva em um curto período", afirma Beth Haley, pesquisadora de pós-doutorado da Escola de Saúde Pública da Universidade de Boston (BUSPH) e líder o estudo. "Nossas descobertas são preocupantes porque as previsões de mudanças climáticas sugerem que chuvas intensas se tornarão mais frequentes e intensas, o que significa que os moradores de comunidades expostas a cursos de água contaminados por esgoto podem enfrentar risco aumentado de doenças gastrointestinais graves", diz.

 

Extremos

A equipe avaliou dados de precipitação e registros de saúde de 17 cidades de Massachusetts que fazem fronteira com o Merrimack. Os resultados mostraram que moradores de áreas afetadas por enchentes com transbordamentos de esgoto tinham 62% mais probabilidade de desenvolver doenças gastrointestinais nos dias que se seguiram ao evento, comparado a períodos em que a chuva não foi suficiente para provocar alagamentos. "Tememos que eventos de precipitação mais extremos devido às alterações climáticas estimulem transbordamentos de esgoto em grande escala, colocando a saúde dos residentes em risco ainda maior", diz Haley. 

 

O biólogo Rodrigo Chitolina, mestre em microbiologia e parasitologia, explica que as águas das enchentes aumentam significativamente o risco de doenças infecciosas porque bactérias, vírus, protozoários e parasitas presentes no ambiente causam enfermidades, como infecções respiratórias, hepatite, leptospirose e dermatites. 

 

Mortalidade cresce

 

A análise de uma década de inundações, que afetaram 34 países alerta que moradores de áreas alagadas correm um risco significativamente maior de morrer, incluindo impactos por doenças cardíacas e pulmonares, entre três e seis semanas após o evento, mesmo com a contenção das cheias. O estudo, liderado pela Universidade de Monash, na Austrália, foi publicado no fim do ano passado na revista British Medical Journal (BMJ). 

 

Os professores Shanshan Li e Yuming Guo, da Escola de Saúde Pública e Medicina Preventiva, analisaram dados de 761 comunidades de várias partes do mundo que sofreram pelo menos um evento de inundação durante a década de 2000-2019. No total, revisaram informações de 47,6 milhões de mortes por todas as causas, incluindo 11,1 milhões por doenças cardiovasculares e 4,9 milhões por enfermidades respiratórias. 

 

A equipe descobriu que o risco de morte aumentou e persistiu por até 60 dias (50 dias, no caso de óbitos cardiovasculares) após um dia inundado. A elevação foi de 2,1% para qualquer causa; 2,6% para doenças cardiovasculares, e 4,9% nas enfermidades respiratórias. 

 

Exposição 

 

"As cheias representam quase metade (43%) de todas as catástrofes naturais e prevê-se que aumentem em termos de gravidade, duração e frequência no contexto das alterações climáticas", observa o artigo. Vinte e três por cento das pessoas em todo o mundo estão diretamente expostas a inundações superiores a 0,15m de profundidade em cada década.

 

Yuming Guo afirma que as associações estatísticas variaram com o tipo de clima local e foram mais fortes em populações com baixo nível socioeconômico ou com elevadas proporções de população idosa. "Sabemos agora que a questão é: os riscos de mortalidade mudam após as cheias na população em geral? A resposta é sim, e isso precisa ser levado em consideração nas respostas políticas aos eventos de inundação", diz. 

 

O estudo é observacional: ou seja, não estabeleceu relação de causa e efeito. Porém, os pesquisadores ressaltam que, em consequência de inundações, as mortes podem ser por causas naturais ou desencadeadas pela contaminação de alimentos e água, exposição a agentes patogênicos, dificuldade de acesso aos serviços de saúde e transtornos psicológicos.

 

"Além das doenças infecciosas, a contaminação química da água pode causar irritações nas vias respiratórias, nos olhos e na pele. Em casos mais graves, pode resultar em intoxicação aguda ou crônica, afetando órgãos, como o fígado e os rins", afirma Chitolina, especialista no laboratório de biologia molecular e genética DB Diagnósticos. "As enchentes também aumentam o risco de acidentes, como cortes e ferimentos, que, se em contato com água contaminada, podem levar a infecções secundárias", explica. 

 

Vermes

 

Gustavo Campana, médico especialista em parasitologia e diretor-médico do DB, também destaca que a presença de esgoto não tratado na água pode aumentar a carga de parasitas, como Ascaris lumbricoides (lombriga) e Taenia spp. (solitária). "Esses patógenos podem causar uma variedade de sintomas, desde leves a graves, representando um risco significativo para a saúde pública, especialmente em áreas onde o acesso à água potável e saneamento básico é limitado."

 

Uma preocupação da gastroenterologista Juliana Ayres de Alencar Arrais Guerra, do Centro de Cirurgia, Gastroenterologia e Hepatologia (Cighep), em Curitiba, é com possíveis surtos de hepatite A, cujos sintomas podem surgir até 50 dias após a infecção. "A transmissão da doença é por água e alimentos contaminados. Então, o contato da água com o esgoto é fator de risco", diz. "Além disso, há o contato das pessoas diretamente com a água suja, com o compartilhamento de banheiros nos abrigos e a dificuldade em higienizar mãos e alimentos." 

 

A médica destaca que a vacinação em massa é uma medida crucial para evitar ou conter a abrangência de surtos da hepatite A. "A proteção da vacina começa, em geral, dentro de quatro semanas após a vacinação. Deve ser feito um reforço seis meses depois", ensina Juliana Ayres de Alencar Arrais Guerra. O Ministério da Saúde informou, em nota técnica, que crianças, gestantes e pessoas com algumas condições pré-existentes receberão a vacina no Rio Grande do Sul.

 

Impacto

 

A Equipe de Trabalho da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre Alterações Climáticas, Doenças Tropicais Negligenciadas (DTN) e Malária, fez a análise de 42.693 artigos científicos e constatou que ainda não existe uma compreensão suficiente dos impactos reais e potenciais das alterações induzidas pelo homem nos padrões climáticos na malária e nas DTN. “A crise climática tem o potencial de reverter décadas de progresso na saúde e no desenvolvimento globais", disse Tala Al-Ramahi, Diretora de Estratégia da Reaching the Last Mile. “É urgentemente necessário um maior investimento nas pesquisas para apoiar o desenvolvimento de intervenções oportunas e baseadas em evidências, e para nos permitir antecipar e mitigar as piores consequências das alterações climáticas na saúde humana.”

 

As informações são do Correio Braziliense. 

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