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CRÍTICA

'Sandman' chega ao audiovisual com cuidado narrativo e desleixo visual

Publicado em: 08/08/2022 17:17

Adaptação da grande obra de Neil Gaiman chegou na Netflix na última semana (Netflix/Divulgação)
Adaptação da grande obra de Neil Gaiman chegou na Netflix na última semana (Netflix/Divulgação)
Nas últimas duas décadas, o autor britânico Neil Gaiman teve suas obras adaptadas aos montes no cinema e nas TVs, com o streaming aumentando ainda mais essa demanda por suas fantasias nos últimos anos. Contudo, ainda não se tinha havido coragem em trazer para as telas a mais ambiciosa obra-prima de Gaiman: a série de quadrinhos Sandman, publicada desde 1988 e dona de uma mitologia tão vasta em personagens e conceitos, que dá rosto, voz e conflitos para uma gama de elementos da condição humana, como os sonhos, os delírios, os desejos e a própria morte. 

Após quase uma década de idas e vindas, o projeto se concretizou em formato de série e estreou na última semana em uma parceria entre a Warner e a Netflix, serviço de streaming no qual ela está disponível. Em sua primeira temporada, a sensação que essa adaptação deixa é de que a grandiosidade e o apelo de seu material original intimidou o processo criativo da série, que com medo de não estar à altura, buscou fazer o básico, entregando uma narrativa eficiente de dez episódios, mas sem grandes ambições, sobretudo visuais, que fez de Sandman um marco da cultura pop contemporânea. 

Sua narrativa acompanha o personagem-título, também chamado por outros nomes, que faz parte de uma família de entidades conhecidas como “Perpétuos”, personificações de grandes aspectos da vida e do universo. Nosso protagonista é o responsável pelo inconsciente, entre os sonhos, os devaneios e as fantasias. No começo do século passado, ele é capturado por uma seita ocultista que desejava sequestrar sua irmã, a Morte. Já nos dias atuais, ele consegue escapar e parte em uma jornada atrás de reequilibrar todo o caos que sua ausência causou, de poderosos objetos nas mãos de humanos à captura de pesadelos perdidos. 
 
 

A adaptação é feliz em conseguir transpor bem uma verve muito teatral de Sandman, que tem boa parte de sua ação ancorada em diálogos, exposições de conceitos e regras daquela mitologia, em uma narrativa muito calcada na palavra. Há um elenco que consegue transformar toda essa verborragia em um drama envolvente, como Tom Sturridge, que acha brechas muito expressivas na grande apatia de seu protagonista, dotando-o de uma estranha e cativante humanização. Há também todo um coral que embarca nessa condução dramatúrgica da encenação, como a Lúcifer vivida por Gwendoline Christie e a grata surpresa que é Boyd Holbrook como o pesadelo Coríntio. 

Com essa condução, Sandman também permite se entregar a um aspecto mais episódico em sua construção narrativa, que por mais que abrigue uma grande unidade durante toda a temporada, não fica preso em uma ditadura da urgência, na qual tudo precisa ser uma ação que leve a história imediatamente adiante. Há episódios que são grandes respiros e que saboreiam a própria mitologia sem muita pressa, entregando pequenos melodramas com um bonito sentimentalismo, ainda que oscilante, trazendo grandes momentos como o capítulo no qual o protagonista acompanha sua irmã Morte para aprender um pouco mais sobre sua função na existência. 
 
 

Fica claramente observável que se trata de um projeto que oferece possibilidades visuais tão vastas quanto sua mitologia, algo que faz parte da essência das HQs de Sandman. Mas a direção, dividida entre vários nomes durante os dez episódios, toma os caminhos mais insípidos possíveis. Ou é tudo muito claro, ou é tudo muito fechado ou é tudo muito estéril. É uma imagem de texturas muito lisas e limpas, de pouca densidade, que nem abraça essa plasticidade mais onírica que é ofertada como possibilidade estética, nem também inspira uma sujeira que poderia ser característica. Em certo momento, vemos um elevador coberto de vísceras humanas que mais parece um amador exercício de artes plásticas digitais do que realmente o cenário de um massacre. 

O sentimento final é de que se buscava cumprir um dever muito mais narrativo, que também encontra percalços rítmicos, vale dizer, do que uma imersão visual propriamente dita nessa fantasia proposta. Ainda assim, é um bom começo, bem sustentado por seu elenco, mas que deixa esse desejo de um pouco mais entrega ao caos do inconsciente, tão bem explorado pelo cinema que vai de Buñuel a Lynch. 

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