CRÍTICA
Quebra-cabeça de sentimentos
Por: André Guerra
Publicado em: 03/08/2023 09:13
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Foto: Divulgação |
Isabel (Elisa Volpatto) parece abalada quando chegano bar de um hotel na Croácia, onde conhece Raul (João Campos), com quem tenta bruta e forçadamente iniciar uma conversa. O rapaz afirma estar indo para um congresso de antropologia na Alemanha e eles pegam a estrada juntos em direção a Dubrovnik. Interações ásperas fazem emergir de rompante o primeiro salto temporal e espacial do filme, que volta ao passado e a Porto Alegre para contar a história de Suzy (Branca Messina), amiga de Raul.
E esse novo capítulo da história abre portas para a psicóloga Manuela (Sílvia Lourenço), terceira mulher do roteiro a se envolver com o protagonista visivelmente quebrado. Nascido de uma viagem pelo mesmo trajeto feita pelo roteirista Leo Garcia e dirigido por Eduardo Wannmacher, Depois de ser cinza, em cartaz, trata o encontro casual como o fio condutor de um novelo de relações ambíguas do personagem principal com essas mulheres. Assim, a narrativa se dedica a desenvolver – ou melhor, exprimir em fragmentos não-lineares – a frustração, perda e culpa em
que o quarteto parece cada vez mais submerso.
Através do naturalismo pálido e estilização mínima, apropriada à atmosfera desesperançosa que permeia os protagonistas, Despois deser cinza começa como filme de estrada tradicional, no qual desconhecidos criam um vínculo imprevisto, mas revela cedo uma estrutura que remete ao quebra cabeça de um mistério. As pistas a serem decifradas, porém, são mais para o público intuir do que para alguém de dentro da ficção – e ainda que Isabel seja uma figura externa aos dramas prévios, ela também é por si só um enigma.
O curioso é que as revelações não ocorrem de maneira objetiva, visto que o espectador não possui quase nenhuma informação a respeito a trama antes de ela se desenrolar. Não há, portanto,
a expectativa por um acontecimento particular, mas a curiosidade constante pelo que guarda esse emaranhado de amores perdidos no limbo entre amizade e desejo. Ao final, muita coisa não é desenvolvida ou explicada pelo roteiro, que trabalha com elipses em momentos-chave de revelações ou rompantes dramáticos.
Apesar da coerência formal em deixar vários tópicos subentendidos, nem sempre as omissões fazem bem a Depois de ser cinza, que às vezes se coloca numa posição confortável de recorrer ao ideal imagético e longas frases de efeito para fugir de resoluções firmes, o que dilui muito do impacto do terceiro ato. Em pleno 2023, é difícil também não prestar atenção na premissa de corpos femininos orbitando dramas, desejos e frustrações essencialmente masculinas, ainda que o filme explore essas mulheres para além da caricatura que se faz delas num primeiro momento.
João Campos interpreta Raul com olhos levemente marejados o tempo todo e as demais atrizes – com destaque para Sílvia Lourenço –, dão constantemente a impressão de choro reprimido, de sofrimento silencioso. É um trabalho que, intencionalmente ou não, acaba refletindo bem um estado emocionalmente meio indefinível e inerte de parte da classe média intelectual brasileira dos últimos anos – os protagonistas, afinal, são psicólogos, antropólogos, filósofos, poliglotas –, que talvez compreenda melhor seus estudos e teorias acadêmicas do que os seus próprios sentimentos.
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