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CINEMA
'Paloma', de Marcelo Gomes, explora com poesia a relação entre fé e desejo
Publicado: 17/11/2022 às 15:02

/Kika Sena, atriz que protagoniza 'Paloma', se tornou a primeira atriz trans a vencer o Troféu Rendentor, no último Festival do Rio.
A vontade de se tornar parte reconhecível de seu entorno e o sonho de viver da forma mais plena e verdadeira possível caminham juntos na vida de Paloma, que dá nome ao novo filme do diretor Marcelo Gomes, premiado no último Festival do Rio e que segue em cartaz nos cinemas. Inspirada em uma história verídica, o longa mostra as dificuldades enfrentadas por uma mulher trans sertaneja que vai até as últimas consequências para se casar na igreja com o homem com quem vive há muito tempo. A resistência do padre, o julgamento de quase todas as pessoas da cidade e até mesmo a relutância por parte de seu namorado em consumar esse antigo desejo são os principais obstáculos à sua frente e, por meio de sua própria determinação e algumas imprescindíveis amizades, as muralhas que a prendem começam a ser derrubadas.
Cineasta intensamente dedicado à construção de personagens em registros que operam na fronteira entre o lirismo e o documentário, ao exemplo de Cinema, aspirinas e urubus e Estou me guardando para quando o carnaval chegar, Marcelo Gomes não foge da tônica emocional de suas obras tal como não tenta se esquivar de tropos da narrativa de superação. Para todo o aspecto realista da câmera na mão e das interpretações honestas em sua crueza, Paloma tem uma estrutura bastante clássica no tratamento do conflito e ocasionalmente reiterativa; apropriadamente se atém ao ponto de vista da protagonista quase de modo integral, mas também não economiza nos convencionais cochichos e olhares da opressão sofrida por ela.
A sensibilidade do diretor ao buscar entender as razões que levam sua protagonista a passar por cima de todo o sistema - que, a princípio, não lhe parecia tão agressivamente hostil - para realizar um sonho visto por todos como inusitado para uma mulher como ela é o que estabelece equilíbrio ao filme, além de só ter sido possível por meio da sinceridade na interpretação da novata em longa-metragem Kika Sena. Primeira trans contemplada com o Troféu Redentor no Festival do Rio, a atriz encarna com autenticidade a alma de alguém com raízes firmes no Sertão onde viveu toda a vida (e, portanto, uma fé cristã inabalável naquilo que aprendeu a seguir), mas, ao mesmo tempo, sempre sentiu a exclusão por parte da mesma religião em que acredita. É na dualidade entre o pertencimento e a expectativa de uma liberdade nunca experimentada que Paloma ganha sua força - e sua poesia.
ENTREVISTA - Kika Sena
Como foi o processo para acolher e se transformar em Paloma?
Tivemos uma preparação de elenco espetacular por parte da Sílvia Lourenço, que, juntamente com Marcelo, fez um trabalho de trabalhar com as necessidades de cada ator. Por ser a personagem principal, eu pude ter um olhar mais duradouro, então minhas dificuldades estavam mais no sentido de desmontar meu corpo hiper urbano de uma pessoa que morou em Brasília e frequentou universidade. Com a ajuda de Marcelo e Sílvia, eu voltei à minha infância, busquei na minha mãe e nas pessoas que conviveram comigo e em muitas outras fontes, principalmente meu trabalho com teatro e performance, e fui aos poucos descobrindo Paloma.
Como você enxerga o impacto da religiosidade na vida da protagonista, que, mesmo religiosa, tem de enfrentar na própria religião barreiras para realizar seu sonho?
Sou filha de macumbeira, preta e nordestina, então fui batizada tanto na macumba quanto na Igreja Católica, mas já cheguei a ser evangélica quando era muito nova e acho que, de modo geral, minha vida foi bastante eclética religiosamente. Mas hoje eu acredito muito na força da natureza e, por já ter passado por muitas religiões, me vejo com um olhar bastante crítico com relação a elas e acho que isso me fez questionar muito desse anseio da Paloma por ser validada a partir disso.
Onde começam as principais diferenças e semelhanças entre você e Paloma?
Acho que temos grandes diferenças porque, apesar de sermos mulheres nordestinas, ela é sertaneja, eu sou litorânea; ela é analfabeta e eu, uma pessoa mais acadêmica. Ambas somos ativistas políticas, mas de maneiras distintas: eu por um lado mais diretamente político e ela de modo muito intuitivo, através da busca pelo seu sonho. Paloma é ativista simplesmente na sua poética de existir nesse mundo.
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