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Pernambuco é representado por filmes de duas diretoras no Festival de Gramado

Publicado: 12/08/2021 às 18:06

'Per Capita' e 'Carro Rei' colocam em cena a figura do carro enquanto fonte de angústia/Divulgação

'Per Capita' e 'Carro Rei' colocam em cena a figura do carro enquanto fonte de angústia/Divulgação

O tradicional Festival de Cinema de Gramado começa sua 49ª edição nesta sexta-feira (13), sendo realizado de forma remota, via streaming e TV fechada, pelo segundo ano consecutivo.

Pernambuco, no ano passado, teve uma premiada dobradinha por lá, com King Kong en Asunción, de Camilo Cavalcante, sendo escolhido como melhor filme e Inabitável, de Enock Carvalho e Matheus Farias se destacando entre os curtas. Agora, a produção local será representada pelas obras de duas diretoras: o curta Per Capita, de Lia Letícia, e o longa Carro Rei, de Renata Pinheiro. 

São duas realizadoras que compartilham muitas similaridades em suas trajetórias. Ambas possuem uma vasta experiência dentro das artes plásticas, incluindo uma forte atuação enquanto diretoras de arte em diversas outras produções e agora chegam à Gramado com filmes que giram em torno de um mesmo objeto enquanto fonte de angústia: o carro. As observações que fizeram nascer os dois filmes também são bastante aproximadas, mas os caminhos seguidos são díspares, com o curta trazendo um fluxo de imagens e performances de grande apelo plástico e o longa focando em uma narrativa sci-fi no Agreste. 

Lia, gaúcha radicada em Pernambuco desde os anos 1990, já trabalhou com mesma temática em uma videoarte e uma exposição fotográfica. Ela lembra de observar, durante uma temporada em Porto Alegre, o quanto se preocupava com seu filho ao caminhar pelas ruas e ter receio dos carros que saíam dos vastos estacionamentos que encontrava em seu trajeto. 

“Essa caminhada trivial me levou a observações sobre como essas máquinas podem se comportar também enquanto armas de matar, mas também chegando a questões como elas são muito simbólicas de um capitalismo tardio nas relações urbanas. São estacionamentos muitas vezes construídos em prédios antigos, a especulação imobiliária ao redor, o status quo que os carros representam. Escrevi um primeiro roteiro bem narrativo, mas fui enxugando, retirei os diálogos e foquei em personagens que são um só, a classe média burguesa”, elabora a diretora. 
 
 

O longa de Renata também partiu de observações em caminhadas, as suas em Boa Viagem, chegando a comentar com Sérgio Oliveira, co-roteirista do filme, a sensação de que os automóveis eram os verdadeiros donos da cidade e portadores de direito. Tal cenário acabou levando-a a escrever o longa girando em torno de um carro que ganha voz a partir de mãos humanas, à la Super Máquina da TV dos anos 1980, e que passa a se organizar politicamente em prol da sobrevivência dos veículos de Caruaru.
 
 “Eu queria fazer um filme onde esses carros já falassem logo enquanto os donos do lugar. Ele nasce dessas observações sobre nossas cidades do Brasil e esse modelo econômico muito ligado à indústria automobilística, com um boom econômico que colocou mais carros nas ruas, trazendo um  modelo de cidade que me incomoda muito. Isso começa em 2014, então o filme foi sendo atualizado de lá pra cá com o avanço da tecnologia e esse uso de uma máquina que ganha uma voz, mas também ganha um poder de manipulação”, explica Renata. 
 
 

Outra distinção entre os dois filmes são os universos imagéticos em que se passam. Lia traz três espaços distintos em seis cenas de angústia, exibidas em uma tela retangular tal qual o parabrisa de um veículo. Tudo é imerso por um preto e branco bem contrastado e um desenho de som intenso, realizado pelo experiente Nicolau Domingues (Fim de Festa, Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar).

“Buscamos soluções analógicas e digitais para trazer esse preto e branco como uma textura de sobriedade e ansiedade. É um filme em que faço uma crítica ao consumismo exacerbado e nós somos grandes consumidores de imagens, então buscamos uma economia visual como um contraste disso. Mas também trouxemos uma banda sonora muito material, enquanto essa presença quase física, estabelecendo uma certa harmonia”.

Já  Carro Rei é bem fincado nas cores de Caruaru e na estilização de uma breve distopia, com carros populares sendo transformados em máquinas futurísticas nos moldes dos inventivos sci-fis brasileiros calcados em uma certa estética da gambiarra. A capital do agreste pernambucano foi escolhida também enquanto um símbolo desse mundo.

 “Caruaru sempre foi um lugar que vi como de um certo culto ao carro. Lá temos um autódromo, o único do estado, mas também é uma terra muito da cultura nossa. É uma terra do capitalismo, mas também é uma terra cheia de poetas e artistas, com um lado do realismo fantástico também, de um Brasil menos explorado, um lugar bem latino também”, aponta Pinheiro. 

Outra coincidência é que os carros-personagens dos dois filmes são do mesmo modelo, um Fiat Uno. Mas se o de Renata é um grande falastrão, o de Lia é mudo e inerte, mesmo que carregando com igual profundidade um certo conflito entre ser coisa e ser humano.

Segundo Lia, trata-se do seguinte ciclo distópico: carros, enquanto objetos, foram sendo humanizados a partir de valores que receberam das pessoas. Mas, de acordo com uma postura do homem orientada pelo mundo capitalista, o que é humano é passível de ser coisificado, o que ocorre com o carro do filme, vilipendiado por um tédio cruel da classe média.  

Dentro da programação oficial, exibida pelo Canal Brasil na TV e no Globoplay, Per Capita está marcado para ser exibido na terça (17) e Carro Rei na quarta (18), a partir das 21h30, contudo o curto seguirá disponível em streaming por todo o período do festival. Não pode exibir na sala de cinema é um situação que as duas diretoras enxergam seus ônus e bônus. Renata lamenta não poder ter a sensação de ver as reações ao filme durante a sessão, assim como a confraternização aconchegante dos entusiastas nos festivais. 

Lia também queria ver seu filme na tela grande pela primeira vez, mas também diz que também se desprende de um certo romantismo da coisa.
 
“Os filmes precisam ser vistos em qualquer lugar. Acho uma discussão elitista essa coisa de precisar manter a aura do filme em um país onde a maior parte das pessoas não têm acesso aos cinemas. É interessante pensar que nessa questão da distribuição global estamos falando de uma formação de público. Mas por um lado mais artístico quero ver na tela grande, mas também quero ver em uma tela na rua, da forma que seja”, conclui. 

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