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Teste de ancestralidade vira alternativa de resgate em país marcado por apagamento

Publicado: 30/05/2021 às 17:05

/Arte: Silvino/DP

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O Brasil é um país de paradoxos. Ao mesmo tempo em que se exalta a diversidade étnica que formou a nossa identidade cultural, as violências do processo de colonização resultaram em um gigante vácuo sobre informações de ancestralidade. Talvez sejam essas duas características - diversidade e vácuo de informações - que expliquem a popularização dos testes de ancestralidade no país nos últimos anos como uma tentativa de resgate cultural. O serviço, que no passado poderia parecer técnica de ficção, já é uma realidade por aqui desde o começo da última década.

A tecnologia da genômica pessoal é baseada em uma leitura de milhares de pontos do DNA de uma pessoa, que será comparada com dados genéticos de indivíduos ao redor de todo o mundo pelos últimos 400 anos. O resultado traz percentuais de predominância dos continentes, incluindo detalhamentos de algumas regiões. "O termo 'genômica' pessoal surgiu para o indivíduo conhecer melhor como funciona o seu DNA", diz Ricardo di Lazzaro Filho, médico e sócio-fundador da Genera, primeiro laboratório brasileiro especializado nessa área.

"No começo, fazíamos testes de paternidade ou intolerância à lactose. Em 2014, começamos a investir nessa investigação mais complexa, pois fomos percebendo uma maior busca por esses testes. As pessoas começaram a discutir mais a questão da ancestralidade", conta. "O Brasil teve uma história dolosa de apagamento da origem da maior parte da população, então percebemos uma sensação de descoberta nos resultados. É super bacana, por exemplo, quando alguém descobre que a maior porcentagem vem da África e comemora por isso".

Ricardo di Lazzaro Filho, médico e sócio-fundador da Genera

Lazzaro Filho ressalta ainda que existe um fator de surpresa, pois muitas vezes a cor da pele não diz exatamente qual é o continente predominante. "Estamos sempre melhorando o teste, pois a base de dados está sempre crescendo, o que aumenta a assertividade. Caso aceitem, as pessoas também podem fazer parte de um banco de dados para encontrar pessoas com DNAs semelhantes. Podem ser parentes próximos ou primos distantes", diz o médico. Para realizar o teste, é necessário solicitar um kit de coleta no site do laboratório.

Kaká Rodrigues, 39, é uma das líderes do comitê de igualdade racial do grupo Mulheres do Brasil e decidiu fazer quando começou a trabalhar com diversidade. "Sou filha de uma casal interracial, minha mãe tem pele clara e meu pai é preto. Eu não tinha muitas informações sobre os meus ancestrais, só até os meus avós. Ninguém que é filho de preto no Brasil tem um conhecimento amplo sobre árvore genealógica”, diz.

"Quando recebi o resultado, fiquei bastante chocada, até um pouco decepcionada por esperar um percentual alto do continente africano. A maior parte do meu DNA é europeu, cerca de 51%, sendo 25% da Itália e 9% da Ibéria. O da África soma 30%, sendo 14% do Oeste e 9% da Costa da Mina”, explica. "O que mais me chamou a atenção foi isso, pois eu nunca soube de ninguém com descendência italiana na família."
  
Kaká Rodrigues e Mariana Lins fizeram o teste para conhecer mais sobre os ancestrais

A jornalista e pesquisadora pernambucana Mariana Lins também realizou o teste por ter pouquíssimas informações sobre a sua árvore genealógica, embora soubesse que suas famílias materna e paterna eram naturais do Sertão de Pernambuco. "A curiosidade aumentou depois que morei na Espanha e tive a minha nacionalidade questionada o tempo inteiro. Eles falavam como se fosse um elogio e isso me incomodava. Diziam que eu ‘não era escura’ ou ‘tinha um corpo muito alto’ para ser brasileira. Eu fiz o teste para entender certas tendências, interesses e afinidades", explica.

O resultado a surpreendeu: cerca de 80% do seu DNA tem origem europeia, com 10% da África e cerca de 7% das Américas. "Eu me surpreendi porque o meu avô materno era negro, então achei que os marcadores viessem em maior quantidade", diz. "Quando fui analisar os 80%, vi que cerca de 34% eram da região Ibérica. Isso para mim fez todo o sentido, porque explicou minha afinidade com a Espanha. Eu sempre tive uma conexão forte com esse país, mas nunca entendi muito bem. Quando eu fui morar lá, era como se estivesse voltando para casa. O teste me deu uma ideia de ancestralidade".

Marcas do racismo
O professor de história e mestrando em filosofia pela UFPE Salviano Feitoza aponta um momento que pode ser considerado fundamental no vácuo sobre a ancestralidade: quando Rui Barbosa ordenou que fossem queimados os documentos que davam conta das origens de africanos e africanas que foram sequestrados para o Brasil.

"Esse ato tinha um duplo objetivo: impedir a reivindicação de indenizações por parte de quem foi escravizada e escravizado (ou mesmo de seus descendentes) e de garantir o apagamento da contribuição, da participação da população africana na composição da sociedade brasileira, uma vez que naquele momento o país vivenciava a busca por embranquecimento."

Apesar da queima de arquivos ter atingido mais os registros dos afrodescendentes, Salviano também ressalta que o apagamento também atinge todos os grupos sociais que não foram privilegiados pela escravização de outros. "Uma observação mais atenciosa revela isso: as histórias narradas em livros didáticos, os nomes de ruas, praças, os monumentos exaltados, tudo isso revela a atenção dada a grupos específicos e o apagamento de outros", diz.

"Quando se observa os nomes que são lembrados, as árvores genealógicas que podem ser feitas em oposição ao nomes que não foram registrados e a ancestralidade que não se conseguem reconstituir, é que se pode ter a dimensão do racismo e do capitalismo na construção do que é chamado de um país abençoado por deus e bonito por natureza", finaliza.

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