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LUTO

Morre Tarcísio Pereira, fundador da Livro 7, vítima de complicações da Covid-19

Publicado em: 26/01/2021 08:14 | Atualizado em: 27/01/2021 16:18

 (Foto: Peu Ricardo/DP FOTO)
Foto: Peu Ricardo/DP FOTO


Há um magnetismo que percorre os corredores de uma livraria, se estende às estantes e nos leva a buscar conforto em poltronas e desfrutar de infinitas leituras acompanhadas de um bom café. Em formato de L (de livro), sem balcão e com livre circulação, foi esse modelo, inédito até então, idealizado por Tarcísio Pereira ao fundar a Livro 7, que deu vida à cena literária do Recife por mais de três décadas. O livreiro se despediu nessa segunda-feira (25), aos 73 anos, vítima de complicações da Covid-19. Ele estava internado há mais de 60 dias no Hospital Português e receberia alta nesta semana, mas teve uma hemorragia na noite de segunda. O velório será nesta terça-feira (26), das 11h às 15h no Cemitério Morada da Paz, em Paulista, onde ocorrerá a cerimônia de cremação.

Tarcísio deixa a esposa, quatro filhos e cinco netos. “Não saí do lado dele. Ele é a pessoa mais linda que já conheci. Nosso amor transcende qualquer coisa”, afirmou a empresária Juliana Lins, filha do livreiro. A juíza federal Joana Carolina Lins Pereira, também filha de Tarcísio, lembra do pai como um guerreiro. “Ele lutou bravamente, por mais de 60 dias, como sempre lutou por tudo aquilo em que acreditava: livros, talentos, cultura nordestina. Continuará conquistando amigos com seu sorriso e maneiras gentis, mas desta vez num plano superior”, escreveu.

Natural do Rio Grande do Norte, Tarcísio passou a maior parte da vida no Recife. Ingressou no Ginásio Pernambucano e estudou jornalismo e história na Universidade Católica de Pernambuco, mas não chegou a concluir as graduações. Atualmente, integrava o conselho editorial da Cepe Editora e atuava como superintendente de marketing e vendas da instituição. Foi o tempo dedicado ao serviço na Livraria Imperatriz, na década de 1960, que plantou a semente para abrir seu próprio estabelecimento dez anos mais tarde.

LIVRO 7
Localizada na Rua Sete de Setembro, no bairro da Boa Vista, a Livro 7 funcionou entre os anos 1970 e 2000, abrigando lançamento de livros, seminários e encontros literários. Recebeu grandes nomes da literatura nacional, como Osman Lins, Gilberto Freyre, Ariano Suassuna, João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar, e internacional, a exemplo do norte-americano Sidney Sheldon e do uruguaio Eduardo Galeano. Também foi palco de debates do movimento Super 8, com os cineastas Celso Marconi, Jomard Muniz de Britto e Fernando Spencer.

Do pequeno espaço de 20 m2 em que foi inaugurado, a Livro 7 se tornou um marco para Pernambuco, chegando a ter 1.200 m2. Tamanho que lhe deu, junto ao número de exemplares (60 mil), o título de maior livraria do Brasil, reconhecida pelo Guinness Book. A Livro 7 era zelo do início ao fim. A seleção de livros, a experiência de passear pelos corredores, oatendimento dos vendedo- res, bem treinados por Tarcísio para entenderem a importância do livro. No início dos anos 1990, o livreiro foi congratulado pela Academia Brasileira de Letras com o Mérito Cultural pela Divulgação da Literatura. A livraria abriu filiais em Alagoas, Paraíba e Ceará.

Best-seller mundial
Em entrevista concedida ao Viver em outubro do ano passado, em razão dos 50 anos de fundação da Livro 7, Tarcísio relembrou da visita do escritor Sidney Sheldon, o maior best-seller mundial do período. “Esse lançamento foi o maior do Brasil, só nessa noite vendeu 940 exemplares. O pessoal também trazia livros já lidos de casa para que ele assinasse. A mulher dele se levantou duas vezes para filmar o tamanho das filas”, contou.

O mais difícil, entretanto, foi fazer a noite acontecer. “O escritor teve receio de vir ao Recife por causa da violência. Para tentar salvar a noite, eu montei um esquema que funcionou muito bem, através de fax com umas matérias e notas que tinham saído na mídia. No dia seguinte, ele ligou para a editora e chegaram a um acordo: viria ao Recife num voo comercial e voltaria de jatinho, e alguém teria que bancar. ‘Eu disse a ele que já tava bancado’, mesmo sem saber quanto custaria”, explicou, aos risos.

A livraria deu um novo curso à cena cultural recifense, trazendo música, artesanato, decoração e cervejaria, promovendo um espaço colaborativo e democrático, inclusive com linha de crédito aos estudantes. Apesar da receptividade entre os entusiastas, clientes e artistas, a Livro 7 atravessou a censura do mercado editorial, tendo recebido até visita da Polícia Federal. Foi levada pela instabilidade econômica e a expansão do modelo de livrarias em shopping, o que a fez encerrar atividades em 2000.

Depois do fechamento da livraria, Tarcísio abriu, em 2002, a editora Livro Rápido, em parceria com o amigo Belarmino Alcoforado. Dez anos depois, o livreiro criou a Tarcísio Pereira Editor. No Facebook, gerenciava o grupo Amigos da Livro 7, onde admiradores compartilham memórias vividas no espaço. E estava em seus planos para este ano lançar, pela sua editora, um livro de memórias da Livro 7.

Leia também: Livro 7, livraria recifense que já foi a maior do Brasil, completaria 50 anos em 2020

Inspiração em família
Inspirada pelo amor do pai aos livros, a empresária Juliana Lins mantém o Vila 7 Diversão Inteligente, loja pop-up que comercializa obras infantis e brinquedos educativos no Shopping Recife para estimular o desenvolvimento cognitivo de crianças. A proposta do espaço, inaugurado em 2011, une a diversão e a interação entre os membros da família, fazendo com que o público da primeira idade tenha interesse pelo objeto livro, preocupação constante entre os gestores das livrarias de ruas do Recife.

“Tenho a escola Livro 7 na veia. Meu pai foi pioneiro em eventos culturais na cidade. Lembro das visitações escolares, os alunos compravam livrinhos e depois iam ao microfone recitar poemas. Era um passeio maravilhoso, fazia parte do histórico escolar de muitas instituições. Além das apresentações, ele tinha muito cuidado, os cavaletes já eram baixinhos para as crianças terem contato direto com os livros, isso foi alimentando meu sonho de trabalhar no mundo infantil”, explicou a empresária, em entrevista ao Blog João Alberto, em outubro de 2018.

Ela ainda destacou a sua profunda relação com a literatura, estimulada pelos laços familiares. “Sou filha de livreiro com jornalista. Tenho um avô escritor consagrado mundialmente... impossível estar alheio a essa realidade. Eu cresci entre corredores de livros, ricas bibliotecas, saraus, serestas e amor à poesia. Passava toda tarde na Livro 7, os vendedores eram verdadeiros vendedores de livros, escutava tudo. Entendia de livros espíritas a autores russos. Adorava arrumar a coleção Primeiros Passos, ainda dava uma lida por curiosidade em alguns assuntos no meio da arrumação”, lembrou Juliana, que é neta do escritor Osman Lins e filha da jornalista Letícia Lins.

Nóis Sofre... Mas Nóis Goza
De forma triste e poética, Tarcísio Pereira se foi a menos de um mês do carnaval, no primeiro ano em que o bloco Nóis Sofre... Mas Nóis Goza, criado por ele, não desfilará nas ruas, por causa da pandemia. A interrupção do tradicional desfile no Sábado de Zé Pereira, no bairro da Boa Vista, depois de mais de 40 anos de tradição, é como uma reverência a um dos maiores legados do livreiro.

A troça surgiu de uma brincadeira entre poetas da geração 1965, dois anos antes do Galo da Madrugada, em um tempo de censura e de um carnaval ainda dominado por clubes. “No Carnaval de 1976, um grupo de poetas da geração de 65 pegou uma toalha de mesa e uma vassoura para fazer de estandarte e saiu até a Guararapes. Ficaram bebendo ali e, quando apareceu uma troça, um folião soltou: ‘Tem que brincar mesmo. Porque nóis sofre, mas nóis goza’”, lembrou Tarcísio, em outubro passado, em entrevista ao Viver.


DEPOIMENTOS
"Tarcísio Pereira escreveu seu nome na história do Recife, porque faz parte de muitas vidas, de gerações a quem abriu portas para a emoção da convivência. Convivência com as palavras, as pessoas, o conhecimento. E também o direito ao sonho. Tudo isso um espaço como a Livro 7 oferecia a todos nós. Essa página da cultura recifense, de quem acredita e faz da arte um ofício de vida, tão bem personificada por Tarcísio, não pode e não vai ser fechada. O legado é como uma inspiração, para quem vive e luta pela cultura efervescente da nossa cidade, hoje tão impactada por este momento difícil que o mundo atravessa. Hoje mais triste com a perda de alguém como Tarcísio Pereira da Livro 7. Obrigado, Tarcísio, que saibamos seguir este belo e inesquecível exemplo de amor à arte”.
Ricardo Mello, secretário de Cultura do Recife

"Pernambuco perdeu hoje o editor Tarcísio Pereira, um potiguar que marcou época e influenciou gerações com a sua icônica Livraria Livro 7, na Boa Vista, Centro do Recife. A Livro 7 abriu as portas em 1970 num espaço de 20 metros quadrados e, graças ao amor de Tarcísio pela literatura, se transformou num complexo cultural registrado pelo Guiness Book como a maior livraria do Brasil. Quero expressar aqui meu pesar aos familiares e amigos de Tarcísio, nesse momento de dor".
Paulo Câmara, governador de Pernambuco

"Pertenço à geração de Leitores dos tempos da Livro 7 e é deste lugar que desejo falar agora. Tarcísio Pereira nos recebia, ele pessoalmente. E conversava e acolhia. É em nome dos leitores, que desejo agradecer e dizer de como um homem pode, por meio de suas práticas, ajudar a mudar para melhor a vida de muitas pessoas. Recife acorda sem um de seus mais gentis cidadãos".
José Manoel Sobrinho, presidente da Fundação de Cultura Cidade do Recife

"Conheço Tarcísio Pereira desde os anos de 1970, quando a Livro 7 ainda era uma pequena livraria em uma galeria da Rua Sete de Setembro. Sua relação com escritores e editoras fez dele uma âncora cultural de Pernambuco. Tinha uma grande preocupação em trazer livros de qualidade do Sudeste do país e sempre teve o cuidado de treinar seus vendedores para que entendessem a importância e a qualidade literária do livro. Não era uma pessoa que apenas vendia livros. Ele os amava e sabia da importância do seu papel na produção literária. Tarcísio foi único. Em importância, depois dele, ninguém conseguiu cumprir o papel que executou pela literatura pernambucana. Foi em função desse perfil, de pessoa que conhecia profundamente o meio literário porque amava o que fazia, que eu o convidei para o Conselho Editorial da Cepe e, logo depois, para assumir a Superintendência de Marketing e Vendas. Perdemos todos com a partida de Tarcísio. Um dia triste para os amigos e para a cultura de Pernambuco".
Ricardo Leitão, presidente da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe)

"Tarcísio foi um visionário quando criou a Livro 7, uma livraria que antecipou em décadas o que se tornaria tendência de certo modo. Um livreiro que acreditava no livro, nas conversas, nos encontros como algo essencial para o desenvolvimento da leitura, da literatura. E Tarcísio continuou esse trabalho na Cepe coordenando nosso marketing, sempre com a mesma empolgação, mesmo envolvimento, com a ideia de tornar o livro algo acessível para as pessoas. É uma perda imensa para os pernambucanos. Uma tristeza".

Diogo Guedes, editor da Cepe

"É uma perda enorme para as possibilidades futuras da cultura. Tarcísio é um ícone referencial para todo mundo que fez cultura a partir dos anos 70. É um mecenas e um incentivador. Agradeço a presença dele entre nós. Ele deu muito para a arte e a cultura. É uma lenda. Fico feliz de tê-lo conhecido pessoalmente”.

Lailson de Holanda, cartunista, chargista e músico

"Não tenho palavras sobre a morte de Tarcísio Pereira, o governador dos nossos infinitos sete livros... Tenho sua lembrança viva, como quem vai daqui a pouco encontrá-lo na Cepe, trabalhando com a gente, ou na Rua Sete de Setembro, que ele reinventou para a história e a geografia do Recife. Tarcísio está vivo entre nós, leitores, escritores, amantes e curtidores de livros, abertos para sempre na sua presença amiga".

Juareiz Correya, poeta

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