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Como o Recife entra na discussão global de estátuas e homenagens públicas?

Publicado: 16/06/2020 às 13:53

Estátua de Maurício de Nassau, na Praça da República, em Santo Antônio/Foto: Tarciso Augusto/DP Foto

Estátua de Maurício de Nassau, na Praça da República, em Santo Antônio/Foto: Tarciso Augusto/DP Foto

Estátua de Maurício de Nassau, na Praça da República, em Santo Antônio

A onda de protestos antirracistas iniciada com o assassinato do afro-americano George Floyd, cometido por um policial branco em Minneapolis, colocou estátuas, erguidas para eternizar personagens ou entidades da história, em um debate global sobre papéis e significados exercidos pelos monumentos na sociedade. O estopim foi a derrubada da estátua do mercador de escravos Edward Colston, na cidade de Bristol, na Inglaterra. No século 17, ele foi sócio da Royal African Company, empresa responsável pela captura e venda de mais de 85 mil africanos. A imagem da escultura de pedra sendo arrancada de sua base e jogada em um rio foi multiplicada aos milhões nas redes sociais e provou um efeito dominó catalisador na Europa.

O fenômeno chegou nas Américas quando estátuas de Cristóvão Colombo foram vandalizadas em Massachusetts (essa decapitada), na Virgínia e em Minnesota. Ainda nos EUA, uma estátua de Jefferson Davis, presidente dos Estados Confederados (que se opôs ao fim da escravidão), também foi retirada. E a lista continua crescendo a cada dia, chegando até em figuras recentemente exaltadas pela contemporaneidade, como o britânico Winston Churchill.

No Brasil, quem veio ao centro do debate foi Manuel Borba Gato, eternizado no bairro de Santo Amaro, em São Paulo. Ele foi um bandeirante paulista que percorreu sertões para caçar e escravizar indígenas, ficando rico também por contrabandear ouro. Seu papel foi ressignificado ao descobrir uma mina de ouro em Minas Gerais. O escritor Laurentino Gomes, que recentemente lançou o best-seller Escravidão (Globo Livros, 2019), causou polêmica ao defender a permanência da estátua de Borba. “Estátuas, prédios, palácios e outros monumentos são parte do patrimônio histórico. Devem ser preservados como objetos de estudo e reflexão”, disse, em uma série de tuítes.

RECIFE
No Recife, como esse debate poderia ser aplicado? Ao visitar o projeto Recife Arte Pública, que mapeou as estátuas da cidade com financiamento do Funcultura, é possível confirmar que a maioria dos monumentos é de teor progressista. Temos homenagens a Dom Helder Câmara (Demétrio Albuquerque, Boa Vista, 2009) e Castro Alves (de Celso Antônio, Santo Amaro, 1947). Abelardo da Hora produziu monumentos para Zumbi (São José, 2006), Paulo Freire (UFPE, em 2013), Miguel Arraes (Aeroporto, 2008), além de várias representações do povo. Também existe o famoso Circuito da Poesia, com 12 artistas espalhados no Centro.

Apesar disso, Reinaldo Carneiro Leão, secretário do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, acredita que uma estátua que pode iniciar alguma discussão é a do colonizador Maurício de Nassau, na Praça da República, em Santo Antônio, doada pelo governo alemão em 2004. Embora o alemão-holandês seja lembrado por feitos "cívicos" como embelezar o Centro da cidade e trazer artistas para registro da paisagem, não deveria ser tratado como um benfeitor ou herói, de acordo com o professor.

"Nassau só veio para Pernambuco porque estava endividadíssimo após realizar construções privadas na Holanda. Dos 24 anos da ocupação, sete tiveram coisas positivas por conta dele, que era um homem do renascimento e apreciava o que era belo. Ele construiu essas coisas por prazer próprio. Ao ir embora, fez um saqueamento tão grande de nossas riquezas, que teve que embarcar pela Paraíba. Os dois navios foram abarrotados de coisas que hoje estão nos museus da Holanda, Dinamarca e até da Rússia."

"Sobre a depredação que está ocorrendo no mundo, eu acho um absurdo. Ao invés de destruir, deve-se colocar as obras em museus. Primeiro porque não se pode apagar a história. Mudam as épocas, mas os fatos são os mesmos. Isso é da natureza humana, como uma necessidade básica. Uma figura pode ter sido opressora, mas naquela época foi tida até como benfeitor", opina Reinaldo Carneiro. "Segundo, essas estátuas custaram ao estado, foram pagas com o nosso dinheiro. Em alguns casos não concordo nem com a retirada, como é o caso de Winston Churchill em Londres. Ele é responsável por não vivermos sob o fascismo completo. Quando a Europa estava se acabando, ele resistiu."

Para o professor, os demais mais exemplos do Recife são ligados a nomes de espaços. A Praça Tiradentes, no Bairro do Recife, já se chamou Praça Dom Pedro I. A mudança foi solicitada pois o imperador prejudicou Pernambuco ao retirar territórios do domínio do estado após a revolução de 1824. "Ele mandou esquartejar mais de 20 pessoas. O então prefeito João Paulo jamais colocaria uma avenida com o nome de Dom João VI em Boa Viagem se soubesse que esse também mandou matar muita gente por aqui, e ainda tirou Alagoas de Pernambuco em 1817".

Almirante Marquês de Tamandaré, que comandou forças navais na Guerra do Paraguai, na Praça General Artur Oscar de Andrade Guimarães

Para Reinaldo, outro exemplo nesse sentido é a Praça do Arsenal, no Bairro do Recife. Em 1937, o então prefeito João Pereira Borges financiou uma reforma e renomeou o lugar como Praça General Artur Oscar de Andrade Guimarães, que comandou uma expedição para derrotar Canudos em abril de 1897, com mais de oito mil soldados. Foi a primeira expedição da quarta fase da batalha contra a comunidade sócio-religiosa liderada por Antônio Conselheiro no interior da Bahia, que resistiria até outubro daquele ano. Até hoje o nome da praça é esse, embora poucos a citem assim.

"Algumas pessoas já entraram em contato com o IAHGP querendo tirar esse nome, alegando que Artur massacrou os habitantes de Canudos. Uma coisa horrível, de fato. Sobre a praça voltar ao nome antigo (Arsenal), eu sou inteiramente a favor”, diz Carneiro Leão. Embora o problema central seja o nome, o busto do local é do Almirante Marquês de Tamandaré, responsável por comandar forças navais na Guerra do Paraguai, que matou aproximadamente 150 mil paraguaios entre 1864 e 1870.

REAÇÃO
Monumento ao Abolicionista Joaquim Nabuco (João Bareta e Carrara e Pedro Mayol, 1915), em Santo Antônio, é um exemplo do

O historiador da UFPE Salviano Feitoza acredita que o fenômeno global com estátuas não se trata de uma “depredação”, mas uma reação contra uma narrativa predominante. "A derrubada vai além do simbólico, pois é político. Ela expõe a negação da violência que as estátuas representam para povos colonizados da América ou de africanos escravizados que foram levados para a América. Ambos tiveram silenciamento e apagamento das suas formas de vida e buscaram estratégias para sobreviver.”

Para ele, no caso da sociedade brasileira, as estátuas funcionam como afirmações de poder de grupos dominantes. “Elas estão ali para afirmar um lugar social e estabelecer uma perspectiva de mundo que apaga outros povos. Em alguns casos, elas prestam homenagens à barbárie que exterminou povos e, no final das contas, estabeleceu as desigualdades que atualmente vivemos.”

O historiador cita o Monumento ao Abolicionista Joaquim Nabuco (João Bareta e Carrara e Pedro Mayol, 1915), em Santo Antônio, como um exemplo de dominação. "Ela é a representação da ideia do branco salvador, mas Nabuco era dono de escravos e vinha de uma família escravocrata". Ao olhar a base do monumento, inclusive, é possível ver um homem negro, sem braço e com corpo esquelético, que pede pela ajuda de Joaquim.

"Recife, no geral, mantém um espírito saudosista colonial, até mesmo uma prática colonial que exalta esse passado. Basta observar a quantidade de prédios com o nome de Casa Grande. É uma violência simbólica contra a população negra", finaliza o professor.
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