Diario de Pernambuco
Busca

CINEMA

Único brasileiro vencedor da Palma de Ouro, Anselmo Duarte tem centenário esquecido

Publicado em: 25/04/2020 10:45

Anselmo foi da glória ao ostracismo depois de vencer o Festival de Cannes com o filme O pagador de promessas. (Foto: Acervo UDH)
Anselmo foi da glória ao ostracismo depois de vencer o Festival de Cannes com o filme O pagador de promessas. (Foto: Acervo UDH)
 
Em 1962, no fervor do festival mais importante do cinema mundial, nomes como Luis Buñuel, Michelangelo Antonioni, Robert Bresson e toda a imprensa internacional viram se materializar ali um acontecimento inédito: a Palma de Ouro, prêmio máximo de Cannes, para um brasileiro. A honraria foi concedida a Anselmo Duarte, galã do cinema brasileiro, que se aventurava na direção de seu terceiro filme, O pagador de promessas. A conquista lhe veio como uma bênção, mas também maldição. Depois disso, o cineasta não emplacou. Um tanto disso se deve à sua relação conturbada com intelectuais da época, outro tanto porque nunca conseguiu superar as expectativas do seu feito. Na última terça-feira, o centenário do cineasta foi celebrado de forma discreta, com poucas homenagens, sem revisitações de sua obra icônica, com exceção de uma única exibição num canal de TV por assinatura. A nselmo sofre de um certo descaso memorial, ao mesmo tempo que mantém, até hoje, um feito ainda não repetido por outro realizador brasileiro.
 
A relação de Anselmo com o cinema surgiu ainda quando criança, quando assistia seu irmão no ofício de projecionista em Salto, cidade onde nasceu, no interior do estado de São Paulo. Mas o fato curioso é que sua estreia no cinema foi como figurante, em It’s all true (1942), filme inacabado de Orson Welles no Brasil - ocasião na qual, inclusive, o diretor passou dois dias entre Recife e Olinda.
 
Como ator, Anselmo foi contratado em 1951 pela companhia Vera Cruz, uma das maiores companhias de cinema do Brasil na época. “A companhia da Vera Cruz era um projeto de cinema brasileiro, que começou com algo gigante, trazendo gente da Europa, e logo em seguida naufragou. Ele era um grande ator daquele momento, talvez o maior”, pontua Marcus Mello, editor da revista de cinema Teorema, ao Viver. Dentro da cinematografia brasileira, Anselmo apareceu em um primeiro momento como galã.
 
O início da carreira do diretor nos ajuda a entender tanto certas influências do estúdio no seu fazer cinema, quanto sua relação com outros realizadores da época. “Ele não era respeitado pela intelectualidade de esquerda, que vai se opor à chanchada e ao cinema produzido pela Vera Cruz. Ele era um galã. Na época, a TV não tinha o espaço que tem hoje, mas trazendo para nossa realidade, ele seria tipo um galã global, que resolve fazer um filme que ganha em Cannes. Ele não era um cara levado a sério.” Entre os críticos estava um gigante do Cinema Novo, Glauber Rocha. Os motivos para as desavenças entre os dois eram diversos: o passado de galã de grande companhia, o grande prêmio que nenhum cineasta do Cinema Novo chegou a ter e até uma disputa narrativa-ideológica, já que muitos dizem que Anselmo tinha um alinhamento político mais à direita. As farpas trocadas eram muitas, segundo o filho de Anselmo, em entrevista para Folha de S. Paulo. E tudo piorou quando o diretor subverteu o lema do novo cinema: “Uma câmera na mão, uma ideia na cabeça… e uma merda na tela”.
 
Único vencedor da Palma de Ouro em Cannes, Anselmo Duarte teve um centenário de poucas homenagens e revisitações de sua obra-prima. (Foto: Reprodução)
Único vencedor da Palma de Ouro em Cannes, Anselmo Duarte teve um centenário de poucas homenagens e revisitações de sua obra-prima. (Foto: Reprodução)
 
FORÇA 
Já sobre sua obra absoluta, dificilmente pode-se dizer que tinha algo de reacionário. O pagador de promessas é uma adaptação de texto de Dias Gomes. O longa se passa na década de 1960 e narra a história de Zé do Burro (Leonardo Villar), um homem humilde que enfrenta a igreja e as acusações de ser satanista e comunista por cumprir a promessa de levar uma cruz de madeira para dentro da Igreja de Santa Bárbara, em Salvador. Sua esposa, Rosa (Glória Menezes), acompanha-o na jornada com Maria aos pés da cruz. O filme não seguia qualquer intenção de ser disruptivo. Com atuações teatrais, segue a cartilha do cinema hollywoodiano clássico, sendo executado com primor. “É um filme muito forte e é um filme muito convencional. Com uma direção muito convencional, clássica e acadêmica. Ele tem sua força pela conjunção de elementos que conseguiu reunir”, comenta Marcus.
 
Além de um texto por si só forte, boas atuações e narrativa bem contada, O pagador de promessas tem um final extremamente arrebatador. Esse conjunto da obra conquistou o júri em Cannes, que na ocasião tinha a presença de François Truffaut, e desbancou nomes como Agnès Varda, Michelangelo Antonioni, Luis Buñuel e Robert Bresson. Além disso, fi escolhido como o filme a representar o Brasil no Oscar, conseguindo indicação de melhor filme estrangeiro.
 
ESQUECIMENTO 
Mas no centenário do diretor, o que fica é a impressão de esquecimento. “A história de Anselmo fala também sobre uma história da cultura do Brasil como um todo, são várias e vários que foram esquecidos. Se um filme não tiver uma cópia em HD decente, ele não vai circular. Inclusive esse é um dos grandes problemas com o cinema brasileiro. Em diferentes épocas e diferentes contextos, o cinema sempre é atacado ou esquecido”, critica Marcus Mello.
 
Nenhum outro filme do dirtor vingou tanto, mesmo longas com Glória Menezes, que não tiveram repercussão. Nas raras entrevistas e contatos com a imprensa, Anselmo sempre ressalta seu apagamento. “A gente o chamou para participar de um evento de cinema aqui em Porto Alegre, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, mas ele não veio porque tinha medo de viajar de avião. Conversamos por telefone e ele falou muito que era esquecido. Ele tinha essa mágoa”, completa Marcus.
Com um prêmio que por vezes soa como bênção e uma maldição, Anselmo carregou essa cruz até seus últimos dias de ostracismo. Em 2009, foi homenageado pelo estado de São Paulo com o feito de cavaleiro da Ordem do Ipiranga e, pouco tempo depois, o diretor faleceu por complicações decorrentes de um acidente vascular cerebral.
 
Participações ilustres do Brasil no festival de Cannes:

 - O pagador de promessas conquistou a Palma de Ouro em 1962.

 - Glauber rocha O diretor foi premiado três vezes e exibiu filmes como Terra em transe (1967) e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969).

 - Nelson pereira dos Santos participou do festival com filmes como O alienista (1970) e Amuleto de Ogum (1975).

 - Crônica de um Industrial foi indicado à Palma de Ouro em 1978, mas não participou do festival por censura da ditadura.

- Na história recente tiveram destaque filmes como Ensaio sobre a cegueira (2008), de Fernando Meirelles, e Linha de passe (2008), de Walter Salles, no qual venceu como melhor atriz Sandra Corveloni.

- Fernanda torres Ganhou o prêmio de melhor atriz no festival em 1986, pelo filme Eu sei que vou te amar.

- Bacurau, dos pernambucanos Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho, conquistou o prêmio do Júri, e A vida invisível, do cearense Karim Aïnouz,levou o prêmio da mostra Un Certain Regard em Cannes.
Os comentários abaixo não representam a opinião do jornal Diario de Pernambuco; a responsabilidade é do autor da mensagem.
MAIS NOTÍCIAS DO CANAL