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Com 69 anos de colaboração, Gilberto Freyre fez do Diario a sua casa intelectual

Publicado em: 15/03/2020 10:39 | Atualizado em: 10/06/2021 10:06

Gilberto Freyre escreveu para o Diario de Pernambuco de 1918 até 1987. (Foto: Arquivo DP)
Gilberto Freyre escreveu para o Diario de Pernambuco de 1918 até 1987. (Foto: Arquivo DP)


"Temos à vista um exemplar do belo discurso pronunciado pelo aplicado jovem Gilberto M. Freyre no Colégio Americano Batista, como orador da turma de bacharéis em Ciências e Letras de 1917. É uma peça muito recomendada pelos créditos intelectuais do talentoso jovem, a quem ficamos agradecidos pelo exemplar”. A nota da seção Livros e Folhetos, publicada em 26 de fevereiro de 1918, marcou a primeira aparição do nome de Gilberto Freyre no Diario de Pernambuco. Foi o começo de uma relação que durou quase 70 anos. Um dos intelectuais brasileiros mais importantes do século 20 usou das páginas deste mesmo Diario como ferramenta para, inicialmente, testar as suas habilidades de escritor e, mais tarde, estimular a opinião pública com artigos e crônicas. O jornal também sempre acompanhou de perto todos os seus passos. Usamos o acervo para explorar o vínculo do Diario com o Mestre de Apipucos, que completaria 120 anos neste domingo (15).

"Escrevo de Louisville. É uma cidade antiga. Os kentuckianos gostam de chamá-la 'our good old city'. Ao mesmo tempo é um empório industrial onde fumegam os bueiros de não sei quantas fábricas”, escreveu Freyre, aos 18 anos, em seu primeiro texto para o Diario, datado de 3 de novembro de 1918. Era o começo da série Da outra América, composta por crônicas que refletiam sobre seu cotidiano nos EUA enquanto cursava bacharelado na Universidade de Baylor, no Texas, seguido pelo mestrado na Universidade de Columbia, em Nova York. A aproximação com o jornal provavelmente foi mediada pelo pai Alfredo Freyre, juiz e professor da Faculdade de Direito que já publicava editais desde 1902. "Recebo ocasionalmente do Brasil, de parte de amigos, latas de doces, livros e o Diario de Pernambuco. Eles formam o meu broquel contra as forças sutis que tendem a me desnacionalizar”, registrou Gilberto em crônica de 1921.

Primeira menção ao seu nome (28 de fevereiro de 1918) e crônica da série Da Outra América (31 de agosto de 1918). (Foto: Arquivo DP)
Primeira menção ao seu nome (28 de fevereiro de 1918) e crônica da série Da Outra América (31 de agosto de 1918). (Foto: Arquivo DP)


Nas vésperas do retorno para o Brasil, o jornalista Aníbal Fernandes, que ingressou no Diario para comentar a Primeira Guerra, assina em outubro de 1923 um texto cheio de elogios ao estudante. "Esse escritor, um dos mais jovens dos que escrevem para a imprensa deste país, adquiriu um estilo impressionista, cheio de trouvailles [achados] deliciosos, com horror ao lugar-comum e um senso de medida perfeito, como um discípulo de Nabuco", descreve Aníbal, já demarcando traços importantes do estilo freyriano. Já no Recife, Gilberto continua com crônicas sobre assuntos variados: urbanismo, literatura, educação, história e até culinária brasileira, demonstrando um olhar diverso e especial para objetos tidos como menos importantes à sociologia da época.

Em 1925, quando foi comemorado o centenário do jornal, Freyre foi incumbido de organizar o Livro do Nordeste, que reuniu intelectuais da época como Euclydes Fonseca, Joaquim Cardozo, Mário Melo e José dos Anjos para pensar questões sociais, culturais e econômicas da região e de Pernambuco. “É um momento de conhecimento de significação continental”, escreveu, nas vésperas da comemoração. “Os quase 100 anos deste jornal mostram que as forças de cultura estão adquirindo consistência na América do Sul”. No final da década, Freyre deixa o veículo para ser secretário pessoal do recém-eleito governador Estácio Coimbra. “Este jovem pensador não tardaria a aferir atenção das elites culturais do país. Aos 25 anos, ostenta uma cultura opulenta e completa”, registrou o Diario, em 26 de outubro de 1926.

Quando sua carreira se mostrava tão meteórica, a Revolução de 1930 causou uma estagnação. O golpe de estado que levou Getúlio Vargas ao poder acertou em cheio o governo de Estácio Coimbra. Freyre foi exilado, passando pela África e países como Portugal, Inglaterra e EUA. Seu nome some das páginas do Diario. Em contrapartida, o escritor usou do intervalo para construir sua obra máxima: Casa-grande & senzala, que causou alvoroço no meio intelectual e ganhou projeção internacional por propor uma sociologia ancorada em percepções de vivências e no cotidiano, enxergando a miscigenação como positiva. “Além do aspecto científico, o que distingue o livro é a qualidade literária do texto dele, que foi sendo aprimorada nos primeiros textos no Diario. Ele escrevia de forma coloquial, com português vivo e muito pessoal, sendo dificilmente imitável”, diz o pesquisador Mário Hélio Gomes, gestor da Diretoria de Memória, Educação, Cultura e Arte (Dimeca) da Fundação Joaquim Nabuco.

Expediente como Diretor (7 de novembro de 1934) (Foto: Arquivo DP)
Expediente como Diretor (7 de novembro de 1934) (Foto: Arquivo DP)


Gilberto só volta a ser citado no Diario em novembro de 1934, quando o jornal passa a integrar o grupo Diários Associados, do influente Assis Chateaubriand. “À frente da sua nova direção, eleitos por legítimos acionistas, se encontram Ismael Ribeiro e Gilberto Freyre, uma figura de projeção no cenário cultural do país”, destaca o jornal. O escritor foi diretor durante um período de adaptação do novo grupo. "Ao sair, não perde o seu contato com uma folha a que está intimamente ligado, de que foi durante muito tempo um de seus colaboradores mais ilustres", publica o Diario no egresso.

A partir daí, Freyre aparece menos como colaborador e mais como personagem, principalmente em conferências, viagens, furos sobre novos lançamentos ou denúncias do autoritarismo de Vargas, como fez em relação à Lei de Segurança Nacional (LSN), em 5 de fevereiro de 1935. “Simplesmente sou ameaçado pela minha independência intelectual. Creio que nenhum intelectual, artista ou estudante pode ficar indiferente ao movimento atual de remoção da lei que ameaça a todos”. Após 15 dias, a notícia Ecos do movimento paredista no Recife relata: "A polícia deteve o escritor Gilberto Freyre e os pintores Cícero Dias e Di Cavacalti para prestar depoimentos ao chefe da ordem social". Era mais um episódio de uma série de relações paradoxais com o autoritarismo. 

Crítico de Vargas, apoiador do regime militar: o papel decisivo no rumo político e social do Brasil
Uma multidão reunida na Praça da Independência aguardava o discurso do já renomado Gilberto Freyre, posicionado na sacada do primeiro andar do antigo prédio do Diario de Pernambuco. Um estudante ao lado do escritor caiu da varanda, estendido em volta de uma poça de sangue. Na sua cabeça, uma bala disparada pela polícia do governador Etelvino Lins, ligado ao Estado Novo. O assassinato de Demócrito Souza Filho, em 1945, entrou para a história nacional e marcou a fase mais combativa da trajetória de Freyre, que na ocasião iria defender a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes e criticar a ditadura de Vargas. "O Recife assistiu ontem a uma das cenas mais tristes e vergonhosas de nossa vida política”, registrou o Diario em editorial no dia seguinte.

“A bala da polícia poderia ter sido para Gilberto, que fazia parte de um grupo muito combativo”, avalia o historiador Anco Márcio Tenório, especialista em Freyre. Três anos antes, o escritor denunciou em um jornal do Rio de Janeiro “atividades nazistas e racistas” praticadas por um padre alemão de Olinda, sob confidência do governo estadual. Após repercussão no Recife, foi preso e espancado, junto de seu pai. Nessa fase, Freyre inspirou o movimento estudantil pelo aspecto progressista de Casa grande & senzala, além dos elogiados Sobrados e mucambos (1936), Açúcar (1939) e Ingleses (1942).

Capa do Diario após assassinato de Demócrito Souza Filho na Pracinha no Diario (9 de abril de 1945) (Foto: Arquivo DP)
Capa do Diario após assassinato de Demócrito Souza Filho na Pracinha no Diario (9 de abril de 1945) (Foto: Arquivo DP)


“O pensamento de Gilberto é completamente anti-fascista. Tanto é que grupos fascistoides vão propor que todas edições de Casa grande & senzala sejam queimadas em uma fogueira. Houve quem propôs que ele fosse amarrado e colocado nessa mesma fogueira”, diz Anco. Com a redemocratização em vista, ele se filia a União Democrática Nacional. A decisão foi registrada no artigo Definição de atitude, de 28 de julho de 1945: "Não hesito em estar do lado de políticos de tendências nitidamente diversas da minha, mas os quais me ligam o sentimento comum de repúdio à Ditadura Vargas". Em 1946, é eleito deputado federal por Pernambuco. Na década de 1950, seus artigos são publicados aos domingos, muitos deles relatando o cotidiano legislativo no Rio, então capital federal. Nessa década, ele consegue aprovar na Câmara e no Senado a criação do Instituto Joaquim Nabuco, atual Fundaj.

Nos anos 1960, a imprensa compra a narrativa de que uma revolução comunista está sendo articulada por João Goulart. Freyre, já idoso, entra em consonância inflamada. Seus textos dominicais registram um momento controverso de sua biografia, fazendo com que parte da esquerda o tache como “reacionário” até os dias atuais. No artigo primeiro artigo pós-golpe de 1964, intitulado Forças Armadas: Uma Força suprapartidária na vida pública brasileira, ele afirma que o exército foi necessário em um momento "de agudo desajustamento internacional e para sobrepor aos interesses facciosos".

Ainda mais polêmico é O caso da universidade do Recife, em que o escritor ataca o reitor João Alfredo da Costa Lima, sugerindo que seja deposto pelos militares. "Culminaram gritantes propagandas de caráter comunista da Rádio Universitária, de idéias e ideais anti-brasileiros; em iniciativas nada universitárias ligadas à chamada 'extensão universitária' e à 'campanha de alfabetização', esta com objetivos ideológicos”, diz, também criticando projeto de Paulo Freire.

Primeiro artigo após golpe militar de 1964, exaltando o novo regime (5 de abril de 1964) (Foto: Arquivo DP)
Primeiro artigo após golpe militar de 1964, exaltando o novo regime (5 de abril de 1964) (Foto: Arquivo DP)


Pesquisadora pela universidade de Cambridge, Maria Lúcia Pallares é autora de Um vitoriano dos trópicos (Unesp, 2005), livro que apresentou uma narrativa inovadora dos elementos formadores do pensamento freyriano. Ela argumenta que Freyre sempre foi favorável ao exército. "Ele recebeu a revolução de 1964 como uma busca de 'soluções brasileiras para problemas brasileiros'. Podemos dizer que seu 'brasileirismo' ficará descontrolado nos anos 1960, e que sua preocupação com ideias e intrusões estrangeiras, que, segundo ele, poderiam 'desbrasileirar' o país, havia feito dele um nacionalista agressivo. É bom lembrar que a atuação dos militares àquela época não dava ideia do que eles fariam após a tomada do poder."

É possível encontrar críticas de Freyre ao regime militar já na década seguinte, como no célebre artigo Clamando pelo Recife, de julho de 1970. "A desgraça que acaba de atingir de modo tão terrível a desprezada cidade do Recife, capital do abandonado Estado de Pernambuco e metrópole regional do agora apenas retoricamente lembrado Nordeste, é uma advertência a todos os responsáveis políticos pelos destinos nacionais do Brasil. [...] Não é possível que essas necessidades deixem de ser atendidas como merecem."

Destaque na coluna de João Alberto (19 de março de 1980) (Foto: Arquivo DP)
Destaque na coluna de João Alberto (19 de março de 1980) (Foto: Arquivo DP)


Gilberto nunca parou de escrever para o Diario, tendo seus textos replicados em todos os veículos que faziam parte do Diários Associados. Na década de 1980, dividiu espaço com intelectuais como Mauro Motta, Ariano Suassuna, Afrânio Coutinho e José Rafael de Menezes. Nessa época, os artigos já tinham um forte aspecto saudosista. "Costumo dizer que o Diario de Pernambuco foi a casa intelectual de Gilberto Freyre. Todas suas opiniões, reflexões e descobertas estão no jornal, onde escreveu até os seus últimos dias”, diz Anco Márcio. A edição de sua morte, de 19 de julho 1987, trouxe a manchete “Gilberto agora é eterno".

O último artigo de opinião foi publicado neste dia, intitulado Lula Cardoso Ayres, artista plástico que havia falecido três semanas antes. Coincidentemente, era um texto sobre morte e perpetuidade intelectual. Segue o seu último parágrafo: "Nenhum artista, nenhum poeta, nenhum pensador, ninguém a cuja obra se possa associar a ideia de criação ou de criatividade, é um só, do princípio ao fim de sua vida. Ao contrário: é múltiplo dentro do tempo através do qual se estende sua existência; e com a sua existência, sua experiência da qual em grande parte depende a obra que realiza."

Capa da morte (19 de julho de 1987) (Foto: Arquivo DP)
Capa da morte (19 de julho de 1987) (Foto: Arquivo DP)
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