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Há 100 anos, nascia João Cabral de Melo Neto, o 'poeta engenheiro'


Planejar a construção de uma casa envolve definição do terreno, levantamento da mão de obra necessária para a execução até a obtenção dos materiais e documentos. De forma símil, João Cabral de Melo Neto propôs uma engenharia ao escrever. Decidia qual seria o plano do livro, número de poemas, temas tratados. Assim, foi eternizado na história da literatura brasileira e mundial: um poeta sistemático, objetivo e consistente, que rejeitava o trabalho poético como um fruto de epifanias criativas ou inspirativas. E com isso tratou da realidade dura do Nordeste com olhar atento, sobretudo às desigualdades sociais. Hoje é comemorado o centenário do pernambucano, que viajou o globo pelo ofício de diplomata, mas foi imortalizado no mundo pelos seus poemas. Em 1999, mesmo ano de sua morte, tornou-se o único poeta brasileiro a ser forte candidato a receber o prêmio Nobel de Literatura.

Filho de Luís Antônio Cabral de Melo e Carmen Carneiro Leão Cabral de Melo, João Cabral nasceu no Recife, mas passou parte considerável da infância em engenhos de açúcar da família, em São Lourenço da Mata e Moreno, na Zona da Mata pernambucana. Ainda aos 8 anos, já apreciava cordéis e até lia algumas histórias para os empregados da família. Já nessa época, via a diferença entre os senhores de engenho e os mais pobres, fosse pelos cordéis ou pelo contato com os funcionários.


Aos 10 anos, ingressou no Colégio de Ponte d’Uchoa, dos Irmãos Marista, onde estudou até concluir o secundário. Teve uma formação muito rica, que já o preparava para a carreira de diplomata. Estudou muito o parnasianismo de Olavo Bilac, escola que incorporou o espírito positivista e científico, que influenciou o viés “construtivista” de poema.

Na década de 1940, a família se transferiu para o Rio de Janeiro. Na capital fluminense, publicou seu primeiro livro, Pedra do sono (1942), uma coletânea com poemas escritos durante a adolescência em Pernambuco. A obra é considerada um marco inicial do “cabralismo”, pois já tinha uma preocupação na construção do poema e do objeto do qual se fala, mas com experimentação poética e tentativas surrealistas - essa dualidade era evidenciada no título, que mescla o concreto e o sereno.


O diálogo com a cultura espanhola influenciou um processo de evidenciar uma visão objetiva do discurso lírico. O marco do início dessa linha é O engenheiro (1945). Dez anos depois, lançou sua “magnum opus”: Morte e vida severina, livro que retrata, em poema dramático, a trajetória de um retirante do Sertão nordestino em busca de vida melhor no Litoral urbano, narrativa comum em época de forte êxodo rural. O poema segue duas linhas que criam uma dicotomia, já existente no título. O subtítulo do poema é Auto de Natal pernambucano, criando um elo com autos medievais, conhecidos por linguagem simples, às vezes cômicos e moralizadores.


Da obra poética de João Cabral, ainda se pode mencionar O cão sem plumas (1950), O rio (1954), Museu de tudo (1975), Auto do frade (1986), entre outros. João Cabral passou os últimos anos da vida mais recluso em um apartamento no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Chegou a produzir cinco livros nessa época, bem menos explorados pela nova geração de poetas - que evitavam seu formalismo - e pelos críticos.


Uma coletânea bilíngue (português e espanhol) de poemas será lançada na Feira do Livro de Quito, no Equador. O autor também será homenageado no 9º Festival Literário de Araxá (Fliaraxá), em Minas Gerais, em julho. A pesquisadora Edineia Rodrigues Ribeiro encontrou conteúdo inédito no acervo do autor na Fundação Casa de Rui Barbosa, que ainda está sendo analisado - mas cerca de 40 poemas já foram confirmados como inéditos e outras novidades podem surgir. A editora Alfaguara, detentora dos direitos autorais de Cabral, finaliza os trâmites para relançar as obras.

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LINHA DO TEMPO

1920
9 de janeiro - Nasce no Recife, filho de Luís Antônio Cabral de Melo e Carmen Carneiro Leão Cabral de Melo. Passa parte da infância em engenhos da família nos municípios da Zona da Mata.

1930
Ingressa no Colégio de Ponte d’Uchoa, dos Irmãos Marista, onde permanece até concluir o curso secundário.
 
1938
Passa a frequentar o Café Lafayette, ponto de encontro de intelectuais do Recife.

1942
Publica o primeiro livro de poemas, Pedra do sono, reunindo diversos poemas ainda poucos desenvolvidos e escritos durante a adolescência em Pernambuco.

1945
Publica o segundo livro, O engenheiro, custeado pelo empresário e poeta Augusto Frederico Schmidt.

1947
Ingressa na carreira diplomática e passa a viver em várias cidades do mundo, como Barcelona, Londres, Sevilha, Marselha, Genebra, Berna, Assunção e Dacar.

1952
É afastado do Itamaraty pelo governo de Getúlio Vargas, acusado de criar uma  “célula comunista” no Ministério de Relações Exteriores junto com mais quatro diplomatas. Volta ao serviço em 1954 ao recorrer no Supremo Tribunal Federal (STF).

1955
Lança Morte e vida severina, o livro mais popular, que retrata em forma de um poema dramático a trajetória de um retirante do Sertão nordestino em busca de uma vida melhor no Litoral.

1966
Lança A educação pela pedra, onde reúne 48 poemas numa coletânea em que o atinge o ápice de seu estilo de composição poética, sendo um dos últimos livros em que João Cabral propôs uma “arquitetura” ao escrever.

1969
É eleito membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), para ocupar a cadeira número 37, tomando posse em 6 de maio de 1969. Substituiu o jornalista paraibano Assis Chateaubriand, homenageado em seu discurso de posse.
 
1975
Lança Museu de tudo, uma coletânea de 84 poemas esparsos, onde o poeta recifense abre um pouco mão da visão “arquitetônica” característica dos livros anteriores.

1990
João Cabral de Melo Neto é aposentado no posto de embaixador.

1994
A Editora Nova Aguilar, do Rio de Janeiro, publica a vasta obra completa do pernambucano.

1999
Morre no apartamento no bairro do Flamengo, na zona sul do Rio de Janeiro, aos 79 anos. Ele estava deprimido e com graves problemas visuais.

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