Oralidade

Contador de histórias africano faz imersão em comunidades quilombolas de Pernambuco

Publicado em: 12/01/2020 09:41

Franc%u0327ois Bamba e Laura Tamiana. (Foto: Geyson Magno/Divulgação)
Franc%u0327ois Bamba e Laura Tamiana. (Foto: Geyson Magno/Divulgação)
O ensinamento pela oralidade acompanha a trajetória da humanidade, e no continente africano continua tendo o papel de preservar culturas, crenças, valores e visões de mundo. Burkina Faso, país localizado no oeste da África, foi colonizado pela França no final do século 19. François Moïse Bamba nasceu em Bobo-Dioulasso, segunda maior cidade do país, um pouco após a independência do território. Seu pai usava dos contos orais para educar os irmãos, criando uma espécie de grupo de contadores de histórias. Hoje, François é um dos contadores mais famosos de sua terra natal. Realiza viagens internacionais constantemente para propagar essa ancestralidade. No Brasil, já passou por oito estados, contabilizando 50 apresentações. O destino atual é o Sertão do Pajeú, em Pernambuco, para uma imersão em comunidades quilombolas deste sábado até o dia 18.

A iniciativa, com incentivo do Funcultura, procura compartilhar vivências em visita a comunidades de Carnaíba, com rodas de conversa, momentos de contos e oficinas em torno da oralidade. O encerramento, no dia 18, será com um palco aberto no terreiro cultural do quilombo de Abelha. A ação ainda abrange os quilombos de Brejo de Dentro, Gameleira e Travessão do Caroá, que dialogam entre si através da matriz afrodescendente e abrigam em torno de 330 famílias.

Como François fala em francês, a tradução será feita pela artista e produtora Laura Tamiana, que acompanha o contador desde o Festival de Teatro do Agreste (Feteag) de 2017. Eles costumam afirmar que atuam “como um corpo só” para partilhar os contos. “O desejo era trazê-lo de novo e fazer um movimento ainda mais para o interior”, explica Laura, que inscreveu o projeto no edital. “Queremos redesenhar nossa conexão com a África, que é tão carente de atualidades. Nas apresentações e oficinas, vejo nas reações das pessoas um sentimento de saudade de um pertencimento que não percebemos. É algo muito valoroso.”

Quilombolas Carnaíba.  (Foto: Divulgação)
Quilombolas Carnaíba. (Foto: Divulgação)
Questionado sobre o período de imersão no Sertão do Pajeú, área conhecida pela oralidade e poesia, François não se antecipa sobre a experiência. “Espero uma partilha com base na oralidade. Os contos abordados são determinados pelo encontro. Mas posso dizer que fico feliz de deixar a cidade e chegar em um espaço que considero neutro, que aproxima nossa conexão com a natureza. É uma iniciativa que sempre alimenta muito”, diz, em entrevista ao Viver.

Após três visitas no país, ele consegue expressar mesmo o que encontrou de África no Brasil: um desejo de conhecimento mútuo. “Às vezes, essa ligação é desconhecida por conta da história que constrói esse grande país, que é o Brasil. Mas existe essa consciência, essa vontade de descoberta.”

EDUCAÇÃO
Na sociedade tradicional africana, os contadores acabam por também assumir papéis de conselheiros, transmissores das memórias e conciliadores. François Moïse Bamba explica que contos podem ser baseados em histórias reais ou inventadas, explorando o imaginário coletivo histórico e folclórico. “O fundamento do conto africano é aconselhar, orientar, prevenir, e usamos de todas as ferramentas que podemos para isso. O objetivo do conto é o interesse primordial, então não importa muito se é algo real ou não. No final, o ouvinte vai traduzir a mensagem do conto” diz. “É assim que funciona na educação das crianças, por exemplo. Quando o indivíduo se torna adulto, ele passa a entender as coisas por si mesmo. Todo mundo recebe a mesma palavra, e cada um habita essa palavra de forma diferente. Isso vai lhe levar a tomar uma posição, como não engolir tudo o que se vê na TV. A experiência na oralidade o leva a questionar se aquilo é verdade.”

François Bamba e Laura Tamiana.  (Foto: Sesc Osasco/Divulgação)
François Bamba e Laura Tamiana. (Foto: Sesc Osasco/Divulgação)
Os contos têm apelo regional. É comum que sejam similares em países do oeste da África, como  Mali, Níger, Gana e Costa do Marfim. “Esses países foram arbitrariamente divididos pelos colonizadores, então os povos mantêm patrimônios em comum. Mas os de Burkina apresentam variações simbólicas”, explica François. Seu pai, por exemplo, nasceu em um vilarejo no Mali, e existem tios na Costa do Marfim.

Até hoje, a escola convencional de Burkina Faso tem base no conto. “O colonizador entendeu que tinha que considerar nossos valores. Ainda hoje, os maiores livros de contos do país foram escritos por padres ou colonizadores que passaram por lá, além de alguns grandes pensadores locais.” Para o contador, a tradição oral não está perdendo força no país, exceto nas grandes cidades. “Em Burkina, as pessoas do meio urbano são donas da palavra. Elas que possuem as ferramentas de comunicação, e só veem o mundo através da realidade da cidade. Então, muita gente por lá considera que a tradição oral está se perdendo.”

De acordo com François, existem mais de oito mil vilarejos em Burkina Faso, sendo que quatro mil deles não contam com escolas. “Têm lugares que as crianças caminham de 15 a 20 quilômetros para ter uma aula. Então os valores fundamentais ainda são orais. E isso faz com que os povos sejam muito fortes nas suas culturas. Em relação às cidades, existem em torno de 50. E os que têm a ferramenta da palavra falam em nome dos outros, que não a têm.”

Em paralelo ao ofício de contador, o artista desenvolve diversos projetos. Foi por diversos anos diretor artístico do festival Yeleen, em Burkina Faso, diretor artístico e cultural da Maison de la Parole (Casa da Palavra) e coordenador geral da rede internacional de contadores de histórias da África do Oeste Afrifogo. Desde 2018, realiza o Festival Internacional dos Patrimônios Imateriais (transmissão de saberes tradicionais). Neste ano, a cultura do Brasil será representada como cultura convidada, com o objetivo de conectar mais os países.
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