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'A extrema-direita não ascenderia sem fake news', diz autor de livro sobre ativismo político na internet

Publicado em: 11/12/2019 20:07 | Atualizado em: 29/12/2020 21:59

 (Foto: Maria Silvério/Divulgação)
Foto: Maria Silvério/Divulgação


O jornalista e doutor em comunicação Branco di Fátima fez um mergulho no mundo (e submundo) da internet para entender como a rede virtual de computadores afetou o ativismo político mundial nos últimos 30 anos, sobretudo em movimentos que derrubaram líderes políticos tradicionais e contrariaram corporações midiáticas. O mineiro dedicou-se a pesquisas durante cinco anos, resultando no livro Dias de Tormenta: os movimentos de indignação que derrubaram ditaduras, minaram democracias no mundo e levaram a extrema-direita ao poder no Brasil (Geração Editorial).

O autor também ouviu manifestantes e ativistas de diferentes partes do mundo, além de estudiosos e pesquisadores desse fenômeno. Leu documentos do WikiLeaks, e-mails confidenciais e telegramas diplomáticos vazados, relatórios sobre espionagem de governos e reuniu informações de grupos de hackers da deep web, o "lado mais sombrio do ciberespaço".

Em entrevista ao Viver, Branco Di Fátima conversou sobre o panorama do ativismo na internet nos últimos 30 anos, os desdobramentos da Primavera Árabe, as controversas Jornadas de Junho de 2013 no Brasil e, por fim, a ascensão da extrema-direita, as fake news e robôs que manipulam a esfera pública na contemporaneidade.

ENTREVISTA - Branco Di Fátima, jornalista

O ativismo político na internet entrou em pauta na imprensa mundial durante esta década. Seu livro tem como proposta destacar essa temática nos últimos 30 anos. Que episódios foram esses?
Nós tendemos a pensar que o ativismo na internet é um fenômeno recente, mas não é. A primeira vez que a internet foi usada para pressionar um governo foi em 1994, no México, durante o movimento zapatista. Era um levante indígena e camponês, mas a classe média sentiu compatibilidade com a causa e passou a usar os parcos recursos que a internet tinha na época, sobretudo a lista de e-mails. As mensagens convocaram manifestações, serviam como um âmbito de informações contrário ao da grande mídia e tinham como objetivo buscar solidariedade da sociedade, fazendo com que grupos ativistas internacionais olhassem para o México. No começo dos anos 2000, a invasão dos Estados Unidos ao Iraque foi amplamente denunciada em blogs, que eram a novidade da época. As pessoas podiam relatar experiências em sites. Nos atentados de 11 de março de 2004 em Madrid foi a vez dos SMSs se transformarem em uma ferramenta de comunicação. Já as redes sociais conhecemos hoje, foi apenas em 2009, no Irã. Na época, foi a maior manifestação na região desde a revolução islâmica.

Os protestos políticos organizados pela internet ganharam a imprensa mundial durante os anos 2010 com a Primavera Árabe, um movimento bem visto pelo Ocidente. No entanto, mesmo com o clamor popular nas redes, os desfechos de muitos países foram autoritários. Por que?
Em 2010, quando houve o estopim no Egito, depois contaminando Tunísia, Líbia e muitos países do Norte da África e do Oriente Médio, era possível observar uma utilização expressiva do Facebook, do Twitter e do YouTube. Mas, na verdade, todos esses países já viviam ditaduras. Os movimentos que têm a internet como base acabam tendo uma facilidade de expressão nas ruas, mas possuem muita dificuldade enquanto instituição. É uma ferramenta boa para questionar governos e pedir um conjunto de reivindicações sem um grande líder, mas não é boa para organização de partidos políticos. Foi o que faltou nesses países. O Egito, por exemplo, voltou para uma ditadura. A Tunísia é o exemplo mais bem sucedido da Primavera. O comitê que negociou a primeira eleição ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 2015. Eles conseguiram uma boa transição para o modelo democrático de administração pública. Já alguns países sequer sentiram a Primavera, como Emirado dos Árabes e Catar. São nações de economia robusta e os cidadãos aceitaram a repressão em nome da estabilidade econômica.

No Brasil, as redes sociais viram protagonistas da articulação de protestos em 2013. Até hoje, as Jornadas de Junho são motivos de controvérsia, sobretudo por enfraquecer a esquerda política. Como você analisa esse episódio?
Esse é um tema complicado porque teríamos que ver o que foi feito nos governos petistas para entender quais as condições socioeconômicas e socioculturais. É inegável que o governo Lula contribuiu muito para a diminuição da desigualdade social no país. Mas, por outro lado, algumas políticas reivindicadas pela classe média não tiveram o sucesso esperado, como a diminuição da criminalidade, por exemplo. A qualidade da educação e da saúde pública também não foi tão aprimorada como a classe média exigia. Esse conjunto de fenômenos já habitava o imaginário brasileiro por muito tempo, eclodindo em 2013 com protestos sem pautas definidas. A então presidente Dilma Rousseff teve certa dificuldade para interpretar o que acontecia e demorou a se pronunciar. Ela teve dificuldade para responder na mesma velocidade que a internet exige. Os movimentos da internet trabalham como um motor de pesquisa do Google: eles perguntam e o governo tem que chegar com uma solução muito rápida. Mas é muito difícil para um governo ter tanta agilidade pelas vias democráticas.

Esse desejo por mudanças rápidas ocasionou a ascensão da extrema-direita?
As Jornadas de Junho ainda estava muito presentes no imaginário da população nas eleições de 2014. Tivemos protestos em diferentes momentos, como contra a Copa e as Olímpiadas. Ali já existiam pessoas que queriam a volta da ditadura ou da monarquia, também aquelas que diziam que “Olavo de Carvalho tem razão”. Era uma fragilidade muito grande de pautas. Dilma Roussef foi reeleita, mas Aécio Neves abriu uma “caixa de Pandora” quando questionou o resultado das eleições. Aquilo aprofundou o problema da representatividade que nós enfrentávamos. O que se viu em diante foi uma grande bofetada no sistema política brasileiro. E talvez o único político profissional que percebeu o potencial extremista da fúria das ruas foi o Bolsonaro. A chegada do perfil oficial de Bolsonaro no Facebook foi justamente durante as manifestações de junho. Em sua primeira publicação, ele já faz um ataque ao PT e suscita a necessidade de uma nova política no Brasil. A publicação teve apenas 60 curtidas, mas nos comentários já tinham pessoas pedindo que ele fosse presidente. No futuro, seriam milhares e milhares de pessoas pedindo o mesmo. A ideia do bolsonarismo nasceu ali.

Acha que, ainda em 2013, algumas das entidades que suscitaram as manifestações já tinham como objetivo a ascensão da direita?
Pesquisas da época revelavam que 80% das pessoas não tinham preferência política, então é difícil prever se alguns organizadores tinham um plano na cabeça. Mas a forma como o movimento se desdobrou possibilitou a ascensão da extrema-direita. Isso se deve em boa medida a um desgaste de toda a classe política. Bolsonaro conseguiu aparecer como renovação mesmo sendo deputado por 27 anos. E claro que também tiveram outros fenômenos para sua eleição, como a facada e a prisão de Lula.

Qual o papel das fakes news no ativismo político contemporâneo?
A extrema-direita não acenderia sem fake news. Ou não teria toda essa representatividade. O que eles fazem? Oferecem soluções simples para problemas muito complexos. Essas soluções se espalham através das fake news. Nós sabemos que as notícias falsas sempre existiram, mas com as redes sociais elas ganharam novas características. Em primeiro, se tornaram muito complexas, difíceis de serem desmascaradas. Em segundo, elas conseguem se propagar em uma velocidade muito mais rápida. Por último, são muito sensacionalistas, então as contrainformações são menos fortes.

Outro fenômeno na militância política atual, sobretudo da extrema-direita mundial, é o uso dos bots (ou robôs). Acha que, por isso, a movimentação da internet pode perder sua credibilidade?
Os robôs realmente têm papéis fundamentais, pois influenciaram nas eleições recentes de vários países e até mesmo no Brexit. Até nas eleições brasileiras de 2014, por exemplo, todos os partidos tiveram contribuição de robôs. Mas nesse livro eu trabalhei com movimentos que tiveram inícios espontâneos. E no caso do Brasil os organizadores iniciais perderam o controle da manifestação. Essa velocidade de partilhar a palavra é fascinante e deve ser olhada com atenção nos próximos anos.

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