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Comédia espírita cearense aborda doação de órgãos e transfobia

Publicado em: 05/11/2019 19:11

Sandro (André Bankoff) e Isadora (Aramis Trindade) (Foto: Jarrod Bryant/Divulgação)
Sandro (André Bankoff) e Isadora (Aramis Trindade) (Foto: Jarrod Bryant/Divulgação)
No Brasil, é quase possível afirmar que filmes com temáticas espíritas se tornaram um “gênero”. Esses longas-metragens, produzidos na maior nação espírita do planeta, geralmente abordam biografias de líderes da doutrina ou viagens de sujeitos a outro plano espiritual. O ineditismo de Bate coração, longa-metragem cearense que chega aos cinemas nesta quinta-feira, é promover um encontro da narrativa espírita com a comédia. A direção é de Glauber Filho (As mães de Chico Xavier e Bezerra de Menezes: O diário de um espírito), que também assina o roteiro ao lado de Daniel Dias e Ronaldo Ciambroni. O texto foi inspirado nas peças Acredite, um espírito baixou em mim e O coração safado, ambas de Ronaldo Ciambroni. A produção é da Estação Luz Filmes, especializada em longas dessa temática.

O filme começa acompanhando a trajetória de dois personagens bastante distintos. Isadora, interpretada pelo pernambucano Aramis Trindade, é uma travesti dona de um salão de beleza famoso na cidade, que é atropelada por um caminhão. Sandro (André Bankoff) é um rapaz rico, galante e cheio de preconceitos, que sofre um ataque de coração em plena noite de Réveillon. Para escapar da morte, precisa de um transplante de coração com urgência. E a ajuda acaba vindo de onde ele menos espera. A doação cria um elo espiritual entre Sandro e Isadora, que ainda se sente presa ao mundo físico e passa a acompanhar a rotina do empresário de perto.

Foto: Jarrod Bryant/Divulgação
Parte do humor do filme trabalha justamente entre o antagonismo comportamental de uma travesti e um heterossexual viril e socialmente privilegiado. Mas as tiragens mais interessantes talvez fiquem com atrizes do coletivo teatral As Travestidas, cujas peças costumam tratar de temas ligados a gênero e sexualidade. Embora não se aprofunde no tema de identidade de gênero, por exemplo, o filme consegue ser bastante didático e respeitoso com as figuras LGBTs. A caricatura fica, na verdade, por parte dos personagens masculinos, como Igor, vivido por Paulo Verllings.

Como o Brasil assistiu a ascensão de várias comédias de sucesso nos últimos anos, às vezes pode parecer que o longa quer repetir o sucesso de fórmulas de produções da Globo Filmes. Mas a regionalidade é o tom que diferencia Bate coração. O humor cearense, como já é do conhecimento geral, é muito singular e ajuda o desenvolvimento dessa produção. A mensagem final é de respeito, igualdade e, principalmente, de estímulo à doação de órgãos.

ENTREVISTA - Glauber Filho, cineasta
Foto: Jarrod Bryant/Divulgação
Foi desafiador dosar a comédia e as temáticas espíritas em Bate coração?
Há uma ideia no senso comum de que a comédia desconstrói a narrativa mais “séria”. Não é verdade, pois através desse gênero podemos falar de coisas atuais e interessantes. O desafio foi pegar um universo que é muito caro dentro da filosofia espírita e trazer isso ao universo LGBT. Como é traduzir o preconceito na comédia? Não queríamos fazer uma caricatura, um riso que reforçasse preconceitos. Queríamos trazer um riso para refletir.

A comédia foi um gênero em alta nesta década. Existiu alguma influência dessas produções em Bate coração?
Existe uma estética de comédia no Brasil que não vem apenas do Rio ou São Paulo. Tem o cinema nordestino, com Cine Holliúdy, por exemplo. Habita ali um certo realismo fantástico. Eu me inspirei muito no Pedro Almodóvar no uso das cores, com situações do cotidiano que podem ser absurdas. Também me inspirei num filme do Roman Polanski, O deus da carnificina, que coloca vida, cotidiano, conflitos, diferenças e opiniões na tela. Trouxe tudo isso com um discurso mais simples.

O filme é leve e aparentemente pode ser consumido pela “família toda”. É por isso que ele não se aprofunda em questões de identidade de gênero, por exemplo?
Queríamos trabalhar com textos de camadas fáceis, que não parassem tanto em algumas questões. Mas existe uma vontade de explorar as diversas formas de família. A travesti é casada com uma mulher e teve um filho fora do casamento. Quando o filho da Isadora entra em cena, ele forma uma nova família com a viúva. Eu não sei bem se ele retrata as coisas de uma forma “leve”, mas sim de uma forma simples. E existem coisas que quem complica são as pessoas. Temos uma visão depurada sobre o universo. A questão da transfobia, por exemplo, também é simbólica e cultural antes de ser diretamente violenta. Está posto ali.

Você teve algum receio em lançar esse filme diante de uma onda conservadora?
Não. As críticas vão vir, pois tocamos em um universo muito sensível. Acredito no seguinte: toda crítica tem lugar de fala, experiência e legitimidade, desde que não tenha violência. Não concordo quando a crítica quer destruir o outro. O lugar do cinema e da arte é justamente provocar essas reações. Mas também acredito que Bate coração possa desarmar esses “locais” mais bélicos. Estamos passando por um momento que as pessoas estão doentes de egoísmo, querendo ter razão em tudo. E o filme vai desarmando isso ao mostrar que é preciso olhar para o outro com humanidade.

Assista ao trailer:

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