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Autor do best-seller 1808 lança trilogia sobre escravidão: 'Brasil voltou ao racismo explícito'

Publicado em: 05/09/2019 15:54 | Atualizado em: 02/08/2020 23:37

Laurentino Gomes (Foto: Vilma Slomp/Divulgação)
Laurentino Gomes (Foto: Vilma Slomp/Divulgação)


Quando lançou 1808 - Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil (Editora Planeta), o jornalista e escritor Laurentino Gomes conseguiu algo incomum no mercado editorial nacional. O gaúcho alcançou uma legião de leitores assíduos e de diferentes perfis, criando best-seller sobre história. Esse fenômeno ocorreu por um estilo de escrita didático e fluído, trazendo muitas curiosidades, além de tiradas cômicas e irônicas sobre personagens históricos do Império (no volume 1822) e da República brasileira (em 1889). A trilogia vendeu cerca de 2,5 milhões de cópias.

Laurentino poderia ter continuado uma certa linha temporal. No entanto, preferiu usar sua visibilidade para tratar de um tema delicado e sempre atual em Escravidão (Globo Livros), sua nova trilogia. O primeiro volume, com subtítulo Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, foi lançado no final de agosto sob o selo da Globo Livros (478 páginas). O livro tem foco na África e cobre um período de aproximadamente 250 anos, entre o início das incursões e captura de escravos pelos portugueses na costa no continente africano até os primeiros episódios marcantes do Brasil colônia. Laurentino leu cerca de 200 livros por seis anos e viajou para 12 países, sendo 8 na África.

O segundo volume será lançado em 2020, concentrando-se no século 18, o ápice do tráfico negreiro, motivado pela descoberta das minas de ouro e diamante no Sudeste brasileiro. O terceiro e último, em 2021, se dedicará ao movimento abolicionista, ao tráfico ilegal de cativos até o fim da escravidão legal. Já nesse primeiro volume, tudo é mais sóbrio, desde a capa até sua abordagem. A escrita didática, as curiosidades com ares de ineditismo permanecem e devem seguir conquistando um público plural, inclusive jovens, estudantes de ensino médio. Laurentino fica feliz com isso: ciência e cultura são importantes na era da desinformação.

ENTREVISTA - Laurentino Gomes, escritor

Você vinha contando a história do Estado brasileiro desde a vinda da coroa até a proclamação da República. Por que mudar de assunto agora?
A hipótese de continuar naquela linha temporal passou pela minha cabeça. Pensei em fazer um livro sobre a Guerra do Paraguai, sobre as rebeliões da Regência, mas aí eu vi que não. O assunto que merecia era a escravidão. Não há como explicar uma história do Brasil atual apenas observando os personagens do Império, da República. Claro que nesse período estão as raízes institucionais, as burocracias do país que temos hoje. Mas existe um código genético, que é a maneira brasileira de se construir desde o período colonial até o século 19. Tudo que somos tem a ver com nossas raízes africanas, sobretudo como hoje nos relacionamos com nosso país. A escravidão está presente, está viva. É um assunto que muito importa hoje, sendo politicamente muito sensível, nos discursos das autoridades brasileiras. Eu decidi me debruçar sabendo que corria certo risco. Inclusive na introdução, justifico porque escrevo sobre o assunto mesmo não sendo negro e todas as questões que envolvem isso. Tem o peso de ser um tema tenso, que poderia não ser um best-seller como foram os anteriores. A capa é mais sóbria, os títulos e subtítulos não são ousados ou irônicos, mas a linguagem está bem preservada. Tem muita coisa curiosa que vai surpreender os leitores. A reação, até agora, está a melhor possível.

Nos livros anteriores, você se debruçou sobre o Brasil. Existiam referências biográficas do exterior, mas sempre para entender nosso país. Agora, visitou a África. Como foi a experiência de imersão em outra cultura e história? Quem eram esses povos que vieram para cá?
Hoje existe um discurso muito racista no Brasil que tenta atribuir a culpa da escravidão aos africanos. O presidente da República disse isso. É por isso que precisamos olhar com cuidado para África. Cheguei na constatação que havia, sim, escravidão nesse continente, como havia na Índia, na Europa, na China. Onde houve humano, houve escravidão. Não foi sinônimo de cor de pele nem de africanidade. A própria palavra escravo vem de eslavo, um povo branco, de olhos azuis que foi escravizado no Império Otomano. As viagens foram experiências enriquecedoras, de aprendizado, experiências culturais. Tive três conclusões. Em primeiro, a África continua tendo uma empatia enorme pelo Brasil. Você chega e começam a falar da seleção brasileira, das músicas, das telenovelas, eles conhecem muito o Brasil. Em segundo, como a África é um choque de modernidade. Você tem a pobreza, países que viraram lixões da indústria do mundo, ao mesmo tempo em que existe uma elite muito empreendedora. Mas o que mais me impressionou é que a escravidão não é um assunto tão importante para eles como é para nós. Eles têm um ressentimento muito grande do colonialismo europeu do século 19, mas quem ficou na África não sofreu como quem veio para o Brasil. Eles estudam, mas não existe um ajuste de contas como há no Brasil e nos Estados Unidos.

Você é um autor que ganhou muita simpatia de leitores jovens e não necessariamente especializados em história. Acha que isso é positivo para combater a anti-intelectualidade que cresce através das redes sociais?
O Brasil e o mundo todo hoje vivem um clima avesso a qualquer racionalidade, evidências da ciência, razão da filosofia. É um mundo muito cru. Voltamos a ver manifestações de racismo explícitas, que nunca julguei que veria na minha vida. Esse discurso está até mesmo nos pronunciamentos das autoridades. Isso que é mais surpreendente. Pessoas que colocam ressentimentos racistas em pronunciamentos oficiais e entrevistas. Podemos nos proteger disso estudando, pesquisando, lendo e buscando argumentos mais sólidos para sair da gritaria, da polarização. Todo mundo grita e ninguém ouve ninguém.

O primeiro volume da trilogia termina com a morte de Zumbi dos Palmares. Logo, abarca bastante o período do açúcar e as invasões holandesas. Pernambuco tem protagonismo na obra.
De todos os estados brasileiros, Pernambuco é o que serve de cenário para esse livro. Já tem bastante da Bahia, enquanto Minas Gerais vai entrar no segundo volume. Pernambuco foi uma das poucas capitanias hereditárias que deram certo, com Duarte Coelho, com a capitania de Pernambuco e o ciclo do açúcar, que é o principal vetor da escravidão brasileira. Como afirmo no começo do livro, escravidão era sinônimo de açúcar e vice-versa. O sal também já era consumido, mas não tinha uma produção pré-industrial: jornadas de trabalho definidas, pessoas especializadas em áreas, engenhos que funcionavam 24 horas por dia. Era um pré-modelo das fábricas que surgiriam na Revolução Industrial da Inglaterra no final do século 18. É em Pernambuco que estão os grandes acontecimentos: Palmares, invasão dos holandeses, presença de grandes teólogos, padres jesuítas que catequizaram a população.
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