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'Para mim, DJ tocando hit é uma coisa estranha', diz DJ Dolores, que completa 30 anos de carreira

Publicado em: 11/07/2019 10:16 | Atualizado em: 18/07/2020 00:16

 (Foto: Leandro de Santana/DP Foto)
Foto: Leandro de Santana/DP Foto


O sergipano Helder Aragão chegou ao Recife em 1985 para estudar artes plásticas, acreditando que a cidade lhe oferecia mais oportunidades. Foi o que ocorreu, mas não como ele imaginava. Logo na primeira semana, conheceu Fred 04, Renato L. e outras figuras que construiriam o manguebeat - ao lado de Hilton Lacerda, ele desenhou a capa do clássico Da lama ao caos, de Chico Science & Nação Zumbi. Rebatizado como DJ Dolores, apostou na música eletrônica em um Recife que era tubo de ensaio para experimentações entre o global e o local. Em 2019, completa 30 anos de carreira nas pickups.

A relação com a cena mangue lhe rendeu prestígio que perdura até hoje, sobretudo na Europa, para onde sua carreira se voltou nos últimos anos. Foram vários álbuns, projetos paralelos como Orchestra Santa Massa, Frevoton, Stank e Banda Sonora, além de trilhas-sonoras para premiados filmes pernambucanos como Tatuagem, de Hilton Lacerda, e O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho.

Brindando o aniversário de carreira, Dolores lançou recentemente um álbum inédito, Recife 19, disponível apenas na Europa pelo selo inglês Sterns Music - que vem trabalhando com outros artistas brasileiros como Luedji Luna, Emicida e Criolo. O nome do álbum também batiza o projeto, formado ao lado da vocalista Erica Natuza (The Voice Brasil), o guitarrista Rogério Samico (da banda de Lula Queiroga), Lucas dos Prazeres (percussão) e Guga Fonseca (synths).

No dia 4 de julho, o grupo iniciou uma turnê que passou por Portugal, Espanha e será finalizada na Bélgica, nesta quinta-feira (11). A concepção do show é voltada às pistas, com batidas que levam a atmosfera do Recife de 2019 para o mundo. Em entrevista ao Viver, DJ Dolores fala mais sobre o novo álbum, relembra o inicio de sua carreira, adianta detalhes dos próximos projetos e reflete sobre a música feita no Recife de hoje.

Entrevista - DJ Dolores, músico
 (Foto: Leandro de Santana/DP Foto)
Foto: Leandro de Santana/DP Foto

Como define o Recife 19?
Tentei transitar por influências musicais que estão acontecendo agora na cidade, mas do meu jeito. A ideia não é fazer uma mimese, mas interpretar. Como qualquer disco meu, não está preso a nenhum estilo ou ritmo específico. Alguém já disse que o que eu faço é um pós-gênero. Eu concordo, pois cada canção tem tantos elementos que não dá para classificar. Provoca até certa estranheza por agregar tantos gêneros, por isso acredito que seja mais bem aceito lá fora, onde estou fazendo a turnê de lançamento.

Você veio ao Recife para estudar artes plásticas. Como nasceu a carreira de DJ?
Nasceu em 1989 em uma festa realizada no Francis Drinks, um prostíbulo que funcionava na Avenida Alfredo Lisboa, no Bairro do Recife. A dona do local achava que o público do ambiente não combinava com a nossa festa e tivemos que pagar para que todas as meninas não trabalhassem naquela noite. Essa festa reuniu muita gente, inclusive considero que tenha sido uma semente do movimento manguebeat. Na sequência, ela percebeu que todo mundo conseguia conviver em paz e fizemos vários eventos. No disco novo tem uma música dedicada a esse lugar escuro, em uma época meio decadente daquele bairro, maas que proporcionou muita coisa bonita.

Como você avalia as transformações que ocorreram na figura do DJ?
Naquela época, a figura do DJ tinha a função de trazer novidades. Era muito difícil ter acesso a músicas diferentes em discos, fitas cassetes ou estações de rádios. Quanto mais diferente, mais respeitado era o DJ. Na década de 1990, comecei a fazer festas com música eletrônica que vinha da África, da Índia, e as pessoas queriam ser surpreendidas. Hoje em dia, acredito que pelas plataformas de streaming serem muito imediatistas, as pessoas vão à festa para ouvir exatamente o que querem. E elas querem estar em ambientes confortáveis, que condizem com suas bolhas sociais, sem aberturas ao novo. Mas, para mim, DJ tocando hit é uma coisa estranha.

 (Foto: Leandro de Santana/DP Foto)
Foto: Leandro de Santana/DP Foto


Recentemente, a imprensa tem apontado o surgimento de uma nova cena pop do Recife, composta por nomes como Flaira Ferro, Barro, Bule e Romero Ferro. Esses artistas combinam gêneros locais com sonoridades mais contemporâneas. Acha que, por essa característica, o manguebeat continue sendo uma bússola? 
Eu não acho que esses artistas tenham muito a ver com o manguebeat. Acho que existe uma influência maior da MPB, tanto na sonoridade quanto nas letras. Na Flaira, pelo menos, enxergo algo semelhante de um projeto meu chamado Frevotron, feito com Maestro Spok e Yuri Queiroga. Na cena pernambucana de hoje, talvez o maior legado do manguebeat tenha sido jogar luz nos artistas mais roots, do coco ou do maracatu. Eles eram menos visíveis antes.

Como é trabalhar com trilhas-sonoras?
É foda porque me permite experimentar bastante, transitar entre gêneros, estilos e sonoridades. Mesmo que meu trabalho seja marcado pelo experimentalismo, são coisas que talvez não fizessem parte dos meus discos autorais. Eu queria fazer trilha sonora antes de pensar em palco. É um ambiente onde me sinto muito confortável.

Sua trilha feita para Tatuagem, do Hilton Lacerda, ganhou o prêmio do Festival de Cinema de Gramado. Agora, você está fazendo uma nova trilha para Fim de festa, o novo filme dele. O que podemos esperar?
Propus que fizéssemos um desenho da coisa mais interessante do Recife hoje, que são as músicas que tocam em carrinhos, caixas de som móveis. É brega, brega-funk, arrocha e música de corno mesmo. A pernambucana MC Negrita, inclusive, faz uma participação cantando em uma festa. Em paralelo a isso, existem coisas experimentais que estão muito conectadas com a narrativa do longa-metragem. 

 (Foto: Leandro de Santana/DP Foto)
Foto: Leandro de Santana/DP Foto


Outro lançamento muito aguardado é o álbum da Lia de Itamaracá, que você assina como produtor musical. O que podemos esperar? Veremos uma Lia mais moderna?
Neste álbum temos aspectos radiofônicos porque trouxemos algumas canções que a Lia gostava quando era mais jovem, na década de 1970, como alguns bregas antigos e boleros. E também tem a ciranda tradicional, claro. O grande desafio é o jeito de gravar, produzir e mixar. Estamos propondo uma sonoridade bem contemporânea. Aqui ou ali tem um moog (batida eletrônica da década de 1970/1980, antes da invenção dos atuais sintetizadores). Espero que as pessoas gostem, pois é uma aposta muito arriscada.

O que mais te chama atenção no Recife de hoje?
O Recife sempre tem coisas interessantes, mais o que me surpreende é o brega-funk. É algo que só poderia acontecer aqui porque tem muito a ver com o fato de ser fruto da cidade, trazendo o espírito da periferia, do coração do povão. É um ritmo que tem muita estrada pela frente por ser supermutante. Em um ano muda muita coisa, são acrescentados novos valores porque é uma construção coletiva. E tudo está conectado com gêneros semelhantes, algo similar ao que está acontecendo no mundo, seja na Índia, em Angola, no Senegal ou no Paquistão. Enfim… o brega-funk é local e cosmopolita ao mesmo tempo. Isso parece um slogan no manguebeat, né não? (risos).

Mesmo assim, o brega-funk ainda não é legitimado pelas instituições que fomentam a cultural.
Mas o brega-funk não precisa disso. É uma cena autônoma. Se estiver acontecendo o Festival de Inverno de Garanhuns, por exemplo, e MC Troia fizer um show em algum lugar dessa cidade, temos certeza que vai lotar. Nesse tido, os MCs são os donos do jogo.
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