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Aos 84 anos, Dona Glorinha do Coco segue fortalecendo o ritmo em segundo álbum

Publicado em: 19/06/2019 17:16 | Atualizado em: 19/06/2019 17:53

Noite linda, o segundo disco de sua carreira, será lançado nesta quarta-feira na loja Passa Disco. Foto: Tarciso Augusto/Esp. DP FOTO
Debaixo das longas saias rodadas da mãe, Maria Belém, a pequena Glorinha assistia animada às sambadas que varavam a madrugada, sempre iluminadas por candeeiros, em frente à sua casa, na Rua dos Pescadores, em Amaro Branco, Olinda, onde mora até hoje. Aos 7 anos, calçando tamancos de madeira, subiu em um tamborete para fazer a segunda voz a pedido da mãe e nunca mais deixou o palco. Aprendeu a tocar ganzá e ritmar as pisadas com bombo, pandeiro e triângulo. 

"O coco é o que eu gosto de fazer e vou seguir cantando até quando eu tiver voz e pernas boas para dançar. Quando estou numa roda, pra mim é o mesmo que estar no céu", conta Dona Glorinha do Coco, enquanto se debruça em uma cadeira de balanço na entrada de sua casa, encarando-me com um sorriso honesto. Reunindo antigas melodias e letras de sua mãe, a coquista criou a sua própria interpretação e, em um caderno pautado, compõe novos a partir do que vivencia à sua volta.

"Os cocos que eu faço vêm da minha cabeça, do que me inspira. É o que vejo na rua. Um dia desses, chegou um rapaz que anda sempre por aqui, o nome dele é Passarás, me pediu para eu tirar um coco e assim eu fiz: 'Ô passarás, para onde você foi? / Foi embora para bem longe, a resposta eu dou depois', e ele adorou", conta, rindo. A cada apresentação, a artista volta ao caderno de anotações e escolhe o repertório. Vaidosa, Glorinha se veste com blusas e saias de cores marcantes, acompanhadas por rendas e alguns detalhes.

Foto: Tarciso Augusto/Esp. DP FOTO
"Gosto de usar também esse chapéu aqui, estou sempre com ele", diz, mostrando um chapéu branco com abas vermelhas com um laço na lateral. "Também é bom comer maçã antes de cantar, para me hidratar e aguentar o show direto, só paro para tomar uma aguinha. Antes era cerveja, mas faz cinco anos que eu parei”, confessa. Aos 84 anos, a mais antiga mestra de Coco de Olinda estampa, nas paredes do mesmo cômodo, fotos e homenagens conquistadas no curto reconhecimento de sua carreira musical.

Apesar de sua longa trajetória ligada ao coco, o primeiro disco, que leva o seu nome, só foi lançado há seis anos. Com ele, foi finalista do Prêmio da Música Brasileira 2015, nas categorias melhor álbum regional e melhor cantora regional. Nesta quarta (19), às 19h, a coquista lança Noite linda, o segundo disco gravado com o apoio do Prêmio Culturas Populares. Sem fugir da estrutura tradicional, o álbum reúne alguns efeitos sonoros e influências de instrumentos percussivos correlatos como a rabeca e o timbal. O lançamento será na loja Passa Disco (Galeria Hora Center, no Espinheiro), com entrada gratuita.

Foto: Divulgação
"Minha mãe era uma grande coquista. Tudo que hoje eu sei, aprendi com ela. Eu era tão pequenininha e magrinha, mas acompanhava. Quando ela descansou, eu tinha 43 anos e sabia que era meu dever continuar”, relata. Maria Belém foi uma das fundadoras do Acorda Povo, folguedo que percorria as ruas da comunidade de Amaro Branco às 4h, fazendo paradas nas casas de pessoas devotas de São João. Depois que a mãe morreu, com oito filhos para criar e um marido ciumento, a artista se afastou dos palcos por alguns anos.

Em continuidade ao legado da mãe, Dona Glorinha do Coco realiza anualmente, há 12 anos, a sambada junina, em frente à sua casa, com estrutura simples, formada por um palco, uma coberta e um som. Neste ano, o festejo que reúne mais de mil pessoas será no dia 28, um sábado, iniciando às 21h e seguindo pela madrugada. "Queríamos fazer uma vez no mês, mas não temos dinheiro para arcar com tudo, então tentamos fazer pelo menos uma edição anual", afirma Isa, produtora da coquista, queixando-se da falta de incentivo público e de atrasos no pagamento dos cachês no último carnaval olindense.

Os tamancos que marcaram o ritmo da resistência

Na antiga Vila dos Pescadores, no fim do século 19, escravos fugidos de um engenho de açúcar em Catende, Zona da Mata em Pernambuco, refugiaram-se à beira do mar. Entre eles, a avó de Glorinha, Joana Belém. O espaço de resistência, como um quilombo urbano, reuniu, ao longo dos anos, entre as brincadeiras dos descendentes, alguns sons ritmados em festas de roda, cadenciados pelos passos acelerados dos tamancos de madeira. Os calçados eram usados para imitar o barulho do coco sendo quebrado, e era incorporado como um instrumento.

Dos engenhos da antiga Capitania de Pernambuco, as letras, criadas espontaneamente a partir de versos simples, eram marcadas por palmas sincronizadas, resgatando os batuques africanos e os bailados indígenas. Em 1925, com a construção de casas dos banhistas que iam veranear em frente ao mar, a Vila foi sendo empurrada para o alto da colina, que se transformou no bairro de Amaro Branco, onde Dona Glorinha cresceu, rodeada por música e folguedos populares.

Dona Glorinha do Coco ao lado da produtora Isa Melo. Foto: Jan Ribeiro/Secult PE
A popularização do ritmo que até então marcava uma cultura de gueto foi trazida anos depois nas experimentações musicais de Chico Science e na ousadia de Selma do Coco. Em 2004, Amaro Branco passou a ser reconhecido como reduto de coquistas através da gravação do disco Coco de Amaro Branco, produzido por Isa Melo. "Por muito tempo, nem as pessoas do Sítio Histórico de Olinda iam para Amaro Branco, um bairro de negros, pobres e marginalizados", relata.

Em seguida, o local passou a ser procurado por muitos pesquisadores e estudantes e, aos poucos, as sambadas foram recebendo mais pessoas. A efusão foi completa com o lançamento do filme O coco, a roda, o pneu e o farol, de Mariana Brennand. Com a boa receptividade, uma nova coletânea trouxe à luz novos trabalhos, entre eles o de Dona Glorinha do Coco.

"Quando eu cheguei e a vi ali, quietinha, escondendo o ouro, cantando daquele jeito, afinada, cheia de ritmo, eu logo notei o potencial. Ela tem uma coisa só dela", conta Isa, responsável por divulgar o trabalho da coquista desde 2006. Com o lançamento do primeiro disco, Glorinha representou a cultura pernambucana em São Paulo, Rio, Cuba e Portugal. "Agora, ela consegue, aos 84 anos, colocar um outro disco de coco no mercado, é muita alegria, mas um reconhecimento necessário para a coquista que é uma memória viva na comunidade".

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