Cinema

Cinebiografia nacional de Allan Kardec ressalta a necessidade de dosar fé e razão

Do mesmo diretor de Nosso Lar, filme expõe que o fundador da doutrina espírita era contra o ensino religioso nas escolas, sendo perseguido pela Igreja Católica e o estado francês

Publicado em: 17/05/2019 11:38

Allan Kardec é interpretado por Leonardo Medeiros. Foto: Daniel Behr/Divulgação
A temática espírita fincou presença em produções audiovisuais do Brasil há décadas, principalmente em telenovelas, pela possibilidade de criar narrativas transcendentes e até sobrenaturais - basta lembrar de A viagem (1994), da Rede Globo. Não é esse tom espetacular, no entanto, que o público verá em Kardec, filme nacional que estreou nesta quinta-feira (16) nos cinemas com a proposta de apresentar uma cinebiografia sóbria de Hippolyte Rivail (nome de batismo de Allan Kardec), fundador da doutrina. Para isso, tem roteiro baseado no livro Kardec - A biografia (2013), best-seller do jornalista carioca Marcel Souto Maior, que esmiuçou a trajetória do educador francês que viveu entre 1804 e 1869.

O longa também chega como celebração aos 150 anos da morte - ou desencarne, para os adeptos - de Kardec, responsável por elaborar uma investigação científica das “mesas girantes”, difundida por toda a Europa no século 19. A produção é totalmente nacional, assinada pela Conspiração, com distribuição da Sony Pictures. A direção ficou com Wagner de Assis, já conhecido por trabalhar com a temática espírita em Nosso lar (2010) e Menina índigo (2017). Ele divide o roteiro com L. G. Bayão (Irmã Dulce e Minha fama de mau). O protagonista é vivido por Leonardo Medeiros, enquanto Sandra Corveloni interpreta a esposa, Amélie-Gabrielle.



"A ideia para o longa veio do próprio Marcel Souto Maior. Eu li a biografia e, quando entendi a história, não pude dizer um ‘não’. A produtora também já estava com interesse de trabalhar a vida do Allan, então foram movimentos paralelos que se juntaram”, explica Wagner de Assis, em entrevista ao Viver. “A produção foi um grande esforço, porque é um filme de época que se passa em uma Paris que não existe mais, então gravamos todas as cenas externas na França e as internas no Rio de Janeiro. Não usamos chroma key, apenas extensões de cenário e efeitos visuais para apagar a modernidade.”

Pode parecer um tanto desmedido tal afinco de uma produção brasileira para abordar a vida de um francês que viveu há 150 anos. Mas, na verdade, Allan Kardec não é famoso na França. Depois de sua morte, uma cooperação bem-sucedida entre o governo francês e a Igreja Católica conseguiu criar um tribunal que julgou toda a sua obra, inclusive o canônico Livro dos espíritos (1869), como farsa. “Os franceses nos paravam no meio das filmagens para perguntar sobre o filme e, quando citamos Allan Kardec, ninguém conhecia, nem os mais velhos”, relata Wagner. "Talvez esse filme só pudesse ter sido feito no Brasil mesmo. Existem várias interpretações, inclusive, sobre o porquê do kardecismo vingar tanto por aqui".

Foto: Daniel Behr/Divulgação
O Brasil é a maior nação espírita do mundo. São 3,8 milhões de adeptos, segundo censo de 2010, um dado que não só explica a existência de tantas outras obras de entretenimento influenciados pela filosofia da doutrina, como justifica também ineditismo do filme. E é justamente por isso que o longa não tem um tom “doutrinário”, mas sim didático, biográfico e verossímil, procurando abarcar todos os públicos. "Fizemos um filme sobre a formação do homem, acima de qualquer coisa. Queremos que os brasileiros em geral reflitam sobre um recorte bem universal que trata da transformação do mundo: você descobre algo, essa coisa mexe com você, você coloca em prática e aquilo vai reverberar para o planeta".

Outro desafio ficou por conta do ator Leonardo Medeiros, que teve de construir o protagonista de forma bastante intuitiva, já que não existem muitas imagens ou fontes que tratam da personalidade e trejeitos de Kardec. “O que temos dele é um único daguerreótipo, método fotográfico em que a pessoa precisava passar 30 minutos diante da câmera. Ele aparece muito sério e sisudo, então a foto não serve muito. Existem documentos históricos, muitos recuperados pelo Marcel Souto Maior, mas de forma estritamente jornalística".

Obra também deve agradar público de outras religiões
Foto: Daniel Behr/Divulgação
A cereja no bolo do filme, que inclusive deve agradar bastante o público não-espírita, é a sua inesperada capacidade de dialogar com a atualidade. Kardec viveu na França de Napoleão III, uma república que mantinha fortes traços de um monarquismo conservador. O país vivia um difícil momento social, com índice de suicídio alto, crescimento da pobreza nas ruas e uma Igreja que estava interferindo muito nas escolas. “O casal era muito a favor da escola laica, então isso causou uma frustração tão grande, que eles passaram a ensinar em casa. É nesse período que surge a documentação de uma médium parisiense que dá o ponto de partida para os estudos na área”, explica Sandra Corveloni, que interpreta Amélie.

“Acredito que tenha três discursos muito atuais”, enumera Leonardo Medeiros. “O ensino laico, já que Kardec defendia um senso crítico, que também é muito discutido atualmente; a liberdade religiosa, pois ele foi perseguido por defender a doutrina que não era o padrão da sociedade francesa; e a liberdade de expressão em geral. São três pilares da democracia.” O diretor Wagner Assis, por sua vez, destaca a simbiose entre fé e razão numa época escura da sociedade francesa, contemporânea ao contexto de Os miseráveis (1862), de Victor Hugo. “Allan Kardec queria unir as pessoas ao invés de jogar pedras nos outros por conta de religião. É um homem de uma razão que, infelizmente, não encontramos muito nos dias de hoje".
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