Cinema

Bar é local de refúgio e resistência em Inferninho, longa cearense que ganhou festivais internacionais

Em cartaz no Cinema São Luiz, tragicomédia com aspectos surrealistas se passa inteiramente em bar utópico que começa a ruir

Publicado em: 23/05/2019 10:51 | Atualizado em: 17/07/2020 23:40

Personagem Coelho é um garçom que reforça tom surrealista da obra (Foto: Alumbramento/Divulgação)
Personagem Coelho é um garçom que reforça tom surrealista da obra (Foto: Alumbramento/Divulgação)


O longa-metragem cearense Inferninho, dirigido por Guto Parente e Pedro Diógenes, é um daqueles filmes inteiramente rodados no mesmo ambiente. Nesse caso, um barzinho decadente que serve como refúgio para pessoas que fogem de padrões da sociedade. No Inferninho, elas podem se expressar livremente e até mesmo assumir posições de poder. A dona é a travesti Deusimar (Yuri Yamamoto). O oásis utópico começa a ruir com a chegada do marinheiro Jarbas (Démick Lopes), que inicia um romance com a proprietária, mas traz consigo doses inconvenientes da realidade do mundo externo.

A narrativa da obra aposta no melodrama latino em tom satírico, resultando em uma tragicomédia com aspectos surrealistas que conquistou diversos festivais no mundo, com destaque para o Festival de Rotterdam, na Holanda, e outras programações na Inglaterra, Alemanha e Argentina. No ano passado, foi vencedor da XI Janela Internacional de Cinema do Recife na categoria Melhor Filme Longa-metragem, a mais importante do evento. Nesta quinta-feira (23), chega ao circuito comercial em uma parceria com a distribuidora mineira Embaúba Filmes, que vai exibi-lo em 21 cidades do país – na capital pernambucana, será exibido no Cinema São Luiz (Rua da Aurora, 175, Boa Vista).

Inferninho nasceu da parceria entre a produtora audiovisual Alumbramento e o Grupo Bagaceira de Teatro durante um laboratório de criação no Porto Iracema das Artes, em Fortaleza, em 2013. A iniciativa da Secretaria de Cultura do Ceará tinha como finalidade a elaboração de um episódio piloto de série de TV, com financiamento de R$ 100 mil. Guto Parente, Pedro Diógenes e Rafael Martins finalizaram o roteiro, mas não encontraram nenhuma forma de levar o produto para a televisão e adaptaram texto para o cinema, com filmagens iniciadas em 2016.

Deusimar (Yuri Yamamoto) e Jarbas (Démick Lopes) vivem romance (Foto: Alumbramento/Divulgação)
Deusimar (Yuri Yamamoto) e Jarbas (Démick Lopes) vivem romance (Foto: Alumbramento/Divulgação)


“Quando vimos nosso orçamento, sabíamos que o filme deveria ser gravado em uma só locação”, conta Diógenes. “As filmagens foram no galpão de uma fazenda, montamos o cenário e ficamos imersos ali durante 12 dias. Colocamos em prática um cinema que tenta transformar dificuldades em potência. Construímos fantasias em cima desses elementos precários, tudo na base da gambiarra mesmo. Tanto que o filme nasceu do desejo de trabalhar o melodrama, mas foge do gênero justamente por ter ganhado tom fantasioso.”

Além dos recursos escassos, outro fator que facilitou a realização em um único ambiente foi essa experiência teatral do elenco, com atores que trabalham nos palcos há 15 anos. Samya De Lavor vive uma cantora que muda de idioma após sofrer uma queda, Rafael Martins encarna um garçom atrapalhado que se veste de coelho (dando força ao tom surrealista) e Tatiana Amorim é uma faxineira “mal-encarada”. A direção de arte de Taís Augusto e a fotografia de Victor de Melo também trabalham para tornar a obra mais singular, com figurinos excêntricos e mise-en-scène experimental.

“Partimos da ideia de que os personagens pudessem viver suas alegrias, delírios e desejos. Isso tem a ver tanto do trabalho da produtora, quanto do grupo teatral. Uma linguagem não podia oprimir a outra de forma dicotômica, mas sim somar”, continua Diógenes. “E esse encontro foi potente diante do pouco recurso. O roteiro, por exemplo, acabou ganhando colaboração dos atores. Essa coletividade é um luxo para qualquer diretor.”

Deusimar (Yuri Yamamoto) protagoniza cenas trágicas ( Foto: Alumbramento/Divulgação)
Deusimar (Yuri Yamamoto) protagoniza cenas trágicas ( Foto: Alumbramento/Divulgação)


Diante de um processo de produção simples, a equipe cearense não esperava tamanha repercussão, inclusive internacional. Inferninho foi exibido em 13 festivais no exterior e em outros dez no Brasil. “Já presenciamos sessões bem emocionantes. Acredito que seja um filme que consegue chegar ao coração do espectador. Foi muito interessante perceber que, apesar de lidar com questões bem regionais, ele conseguiu se comunicar com o espectador da Holanda, da Alemanha”, comemora o diretor.

A universalidade da obra talvez esteja na utopia. Porém, como já dito, nem só de fantasia vive Inferninho. O longa também trata de especulação imobiliária e ganância. São realidades que penetram no enredo de forma áspera. A veracidade negativa, afinal, está sempre batendo na porta também dos espectadores. “Quando escrevemos o roteiro em 2013, o bar Inferninho era uma fantasia completa. Com o passar do tempo, vimos a ascensão de uma forma de poder que busca higienização e padronização, em que a liberdades de ser, existir e amar são inimigas. A realidade de 2019 faz Inferninho ser bem mais realista. Serve para percebemos como a realidade está sempre modificando a concepção da arte e, principalmente, que o nosso Inferninho é um lugar de refúgio e resistência”, finaliza o diretor.

Assista ao trailer:


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