Diario de Pernambuco
Busca

Música

Censurada na ditadura, Ave Sangria canta a liberdade com álbum inédito após 45 anos

'Voltamos na época em que está sendo necessário dizer o que a Ave Sangria diz', diz o baixista Almir de Oliveira

Publicado em: 29/04/2019 09:45 | Atualizado em: 07/08/2020 02:04

Paulo Rafael, Almir de Oliveira e Marco Polo, 45 após o lançamento do lendário álbum de 1974. (Foto: Flora Nigro/Divulgação)
Paulo Rafael, Almir de Oliveira e Marco Polo, 45 após o lançamento do lendário álbum de 1974. (Foto: Flora Nigro/Divulgação)


O disco de estreia da banda pernambucana Ave Sangria (1974) se tornou uma espécie de The piper at the gates of dawn - primeiro álbum da britânica Pink Floyd - nordestino. Aquela sonoridade psicodélica que extinguiu as fronteiras entre rock, MPB e cultura popular até poderia ter sido uma sensação nacional se não fosse pela força da censura, no apogeu da ditadura militar. Marco Polo (vocal), Ivinho (guitarra solo), Paulo Rafael (guitarra base), Almir de Oliveira (baixo), Agrício Noya (percussão) e Israel Semente (bateria) eram destemidos e irreverentes demais em tempos difíceis para os críticos e os criativos. O “Dark side of the moon” da banda nunca chegou.

Na última sexta-feira (26), o grupo finalmente lançou seu segundo disco após diversos reencontros comemorativos e em festivais como Pré-AMP e Guaiamum Treloso Rural. Vendavais está disponível nas plataformas digitais com a mesma proposta de 45 anos atrás: mesclar o rock com ritmos nordestinos, dando vida a uma sonoridade psicodélica e contemporânea. As composições, divididas entre os remanescentes Marco Polo, Almir de Oliveira e Paulo Rafael, seguem entoando discursos a favor da liberdade de expressão, com críticas sociais e psicodelismos divertidos, que abrem espaço para múltiplas interpretações. Juliano Holanda assume o baixo e vocais, Gilu Amaral nas percussões e Júnior do Jarro na bateria.



Quando foi formada, Ave Sangria se chamava Tamarineira Village - em referência ao Greenwich Village de Nova York e ao bairro da Zona Norte do Recife. A fama dos garotos se espalhou pela capital através do “boca a boca”, sem apoio de grande produtor ou marqueteiro. O nome mudou depois de um encontro com uma cigana no interior da Paraíba, que os apelidou de “aves sangrias” - dosando força e poesia. Foram contratados pela gravadora carioca Continental para lançar um disco homônimo, gravado às pressas em cinco dias no Rio de Janeiro e lançado em 1974.

Formação original do Ave Sangria nos anos 1974 (Foto: Almir de Oliveira/Cortesia)
Formação original do Ave Sangria nos anos 1974 (Foto: Almir de Oliveira/Cortesia)


O álbum chegou à lista dos dez mais vendidos de algumas cidades, mas foi a faixa Seu Waldir que caiu no gosto dos jovens pelo tom sarcástico e irreverente de Marco Polo ao narrar uma paixão por um homem mais velho: "O senhor tem que dar um jeito / Senão cometo o suicídio/ Nos dentes de um ofídio". A canção provocou indignação do Recife conservador, numa afronta aos “bons costumes”. Muitos veículos de imprensa criticaram, inclusive jornalistas do Diario de Pernambuco. Como consequência, o disco foi recolhido das lojas e deixou de ser tocado nas rádios, desanimando os integrantes. As aves alçaram voo de recuo.

Agora, voltam pela mesma via que o conservadorismo encontrou brecha: o universo digital. Gerações redescobriram o disco de 1974 nos sites de compartilhamento e, mais recentemente, no streaming. “Como sempre costumamos dizer: em 1970, éramos jovens e os velhos encarceraram nossa obra musical. Agora, somos velhos e os jovens nos libertaram do cárcere cultural”, conta Almir de Oliveira, de 70 anos.

De fato, é aquela mesma Ave Sangria que retorna em 2019. Exceto a instrumental Em órbita, todas as faixas inéditas de Vendavais foram compostas entre 1972 e 1974. A gravação foi realizada no estúdio Órbita, comandado por Carlos Trilha, no Rio de Janeiro, em 2018. A capa surrealista é de Neilton, da banda pernambucana Devotos.

 (Foto: Flora Nigro/Divulgação)
Foto: Flora Nigro/Divulgação


“Poderíamos ter gravado músicas recentes, mas privilegiamos as antigas porque estamos dando sequência ao que fizemos naquela época. Em 45 anos, adquirimos bem mais experiência. Paulo, por exemplo, se tornou um grande guitarrista trabalhando ao lado do Alceu Valença. Deixamos os acordes fluirem naturalmente, usando novas tecnologias, mas a nossa proposta musical e poética continua a mesma”, reforça Almir. As faixas soam simultaneamente nostálgicas e atuais, com destaque para O poeta, rock em que Marco Polo retrata a saga árdua de um personagem que pode ser uma criança ou um artista inconformado.

Outro destaque (não por acaso deu título ao álbum) é Vendavais, ora em tom de revolta e outrora em uma carnavalidade típica de Alceu Valença. "Melhor é escolher o que você quer ser / Mesmo que não seja o aprovado pelo status quo”, entoa o vocalista Marco Polo. “Lá no meio da sujeira, no lado do lodo escuro está o muro da intolerância e da miséria / É sério, isso é verdadeiro / O ser humano conseguiu tornar o mundo nesse breu derradeiro”.

"Ouvi uma amiga dizer que nós renascemos", finaliza Almir. "Na verdade, estamos continuando o que paramos, pois não morremos nunca. Estamos eternizados pela ação da juventude e voltamos em uma época em que está sendo necessário dizer o que a Ave Sangria diz".

ENTREVISTA - MARCO POLO, cantor e compositor

A banda costuma dizer que voltou devido a uma demanda de jovens que conheceram o álbum de 1974 pela internet. Como conseguiram visualizar isso?
Em 2008, a prefeitura do Recife me convidou para fazer um show com o repertório do Ave Sangria, já refletindo esse interesse que estava surgindo na internet. Chamei o Almir e começamos a tocar o repertório em um show no Pátio de São Pedro, onde 90% do público era aquele das antigas. No segundo show, que foi no auditório da Livraria Cultura, já estava dividido entre jovens e mais velhos. Depois, fizemos em um festival de Santa Catarina e tinha 8 mil pessoas, 100% jovens. Todos cantando. Fomos percebendo que nosso público tinha se renovado. A sonoridade, as letras e os arranjos acertaram uma nova juventude que continua se identificando. Acredito que por ser psicodélico e surrealista, abre portas para várias interpretações. É uma obra aberta. E toda juventude é rebelde, até a mais conservadora.

O disco de 1974 foi gravado em condições bem complicadas, em cinco dias. Como foi gravar esse segundo?
Quando gravamos pela primeira vez nunca tínhamos entrado em um estúdio para cantar, exceto algumas experiências na Rozenblit. Não tínhamos nenhum traquejo de como realmente fazer. O nosso produtor na época, o Márcio Augusto Antonucci, não entendia muito bem o nosso trabalho. A gente vinha com uma proposta diferente ele perguntava: "Vocês querem mesmo fazer isso?”. Eu gravei todos os vocais em um dia só. De qualquer forma, a música era tão boa que o álbum sobreviveu até hoje. A gravação de Vendavais foi bem mais prazerosa, entre março e abril do ano passado. Já entendíamos bem mais de música. Resolvemos gravar no estúdio Órbita, no Rio, porque não queríamos ter interferência da família e amigos, focando totalmente no trabalho.

As faixas, embora compostas nos anos 1970, são bem atuais.
Não queríamos fazer apenas entretenimento, mas sim críticas sociais, morais e políticas. Queríamos instigar as pessoas a pensarem nelas próprias. Isso está muito presente nas nossas letras. Para ser sincero, dei uma mexida em duas letras: Vendavais e O poeta. Tinham umas referências muito pontuais dos anos 1970 que não faziam muito sentido hoje em dia. Modifiquei uma palavra ou outra para deixar mais contemporâneo, mas segue sendo um trabalho aberto a interpretações para pessoas se acharem e viajarem.

Muitos músicos censurados durante o regime militar continuaram lançando trabalhos, persistindo. Por que o Ave Sangria não?
Ficamos totalmente desestimulados. Éramos classe média baixa, estávamos apostando tudo naquele trabalho, vivíamos para a música de manhã, de tarde e de noite. Ensaiávamos oito horas por dia, vivíamos aquilo de forma intensa. Éramos sustentados por nossas famílias e quando tudo isso foi cortado, deu um jato d’água gelada em nossos ânimos.

E vocês voltam agora em um novo momento conservador.
É uma coincidência engraçada. Naquela época, vivíamos na ditadura. Agora, vivemos em um conservadorismo retrógrado, conservador. Acredito que estamos fazendo uma música necessária em um momento desnecessário.

Por quê?
Porque a gente não merece regredir para o século 17. Conquistamos tanta coisa de 1988 para cá e agora começamos a andar para trás, com essa postura política, social e moral que está dominando o país. Dominando o mundo todo, na verdade. É um momento desnecessário porque é um atrasado. E nós estamos fazendo uma música necessária justamente para chamar atenção para isso. É como uma reação criativa.
 
Os comentários abaixo não representam a opinião do jornal Diario de Pernambuco; a responsabilidade é do autor da mensagem.
MAIS NOTÍCIAS DO CANAL