Cinema

Nós, novo filme do diretor de Corra!, retrata face sombria dos EUA

Jordan Peele continua apostando em terror com crítica social, desta vez com viés mais filosófico e fantástico

Publicado em: 21/03/2019 13:56 | Atualizado em: 21/03/2019 13:58

Foto: Universal/Divulgação
Quando o cineasta norte-americano Jordan Peele lançou Corra!, em 2017, foi apontado como idealizador de uma breve renovação do terror, gênero que por algum tempo foi saturado por produções que apostavam em sustos simplórios e histórias sobrenaturais rasas. Corra! usou dessa categoria, tão consagrada nas bilheterias, para entregar um thriller psicológico instigante, criticando o racismo estrutural da sociedade estadunidense de forma sagaz e chocante. Isso quando Donald Trump, venerado por grupos supremacistas, havia acabado de chegar à presidência. Em 2018, Peele levou o Oscar de Melhor Roteiro Original.

É justamente por essa estreia triunfante que o segundo filme do diretor e roteirista, intitulado Nós, chega com expectativa dos cinéfilos e do público geral. As doses de ansiedade são acentuadas pelo protagonismo de Lupita Nyong’o, que recentemente brilhou em Pantera negra (2018). A atriz Elizabeth Moss, aclamada por protagonizar a série distópica The handmaid’s tale, aparece como coadjuvante.

Nós dá continuidade ao terror psicológico e intrigante que marca essa construção estilística de Peele, mas desta vez com mais cenas de ação - fazendo referência aos suspenses de perseguição como Pânico (1997) e outros filmes do gênio Wes Craven. Também faz críticas à sociedade norte-americana, mas desta vez com abordagens bem mais sutis e filosóficas, principalmente para os acostumados com clichês hollywoodianos.

A trama acompanha Adelaide (Nyong’o), que quando criança teve uma experiência traumática durante um passeio na praia de Santa Mônica, na Califórnia. Ao se perder os pais em um parque de diversões, a menina encontrou uma outra garota idêntica, uma espécie de clone. O episódio mudou sua vida. Anos depois, já adulta, ela volta ao mesmo litoral para ficar hospedada em uma casa de veraneio com família, agora composta pelo marido Gabe (Winston Duke) e os filhos Jason (Evan Alex) e Zora (Shahadi Wright-Joseph).

Foto: Universal/Divulgação
Esse início constitui uma linguagem conhecida do terror, em que uma família desfruta do “american dream” em um novo espaço que obviamente sofrerá algum ataque ou invasão. O primeiro aspecto político, talvez não tão nítido para alguns, é o filme ser inteiramente protagonizado por negros - afinal, muitos ainda estão acostumados com aquela narrativa em que a primeira assassinada será uma loira sexualizada. Isso pode até gerar a sensação, inicialmente, que será um novo filme sobre racismo. Jordan vai quebrando todas as expectativas ao decorrer da montagem.

O “segundo ato”, que alavanca o ritmo do longa, é quando a casa é invadida por um grupo de malfeitores composto por clones dos membros da família. Cada um se depara com uma versão macabra de si mesmo - a mãe possui os braços tatuados, o filho revela o rosto queimado. Vestidos com roupas vermelhas e armados com uma tesoura dourada, os clones tentam assassinar os originais. “O que são vocês?”, pergunta Adelaide. “Somos americanos”, responde a sósia sombria, abrindo inúmeras indagações.

Seriam esses clones representantes de um lado sanguinário da sociedade estadunidense? Ou eles simbolizam um lado da civilização que foi esquecido, explorado? Em entrevistas, o diretor já revelou que o filme retrata um EUA que tem medo do "outro", do "diferente".

Foto: Universal/Divulgação
As cenas de violência são orquestradas com sagacidade técnica, concepção impecável de enquadramentos, sequências e uma trilha sonora que ajuda a criar uma atmosfera perturbadora, às vezes comicamente ácida - cenas de assassinato da família branca acontece enquanto toca Good vibrations, do The Beach Boys. A atuação de Lupita faz jus a sua recente consagração, visto que a atriz precisa encarnar duas personagens, ambas muito bem construídas. O desempenho de todo o elenco é satisfatório, inclusive das crianças.

Se Corra! tinha uma explicação bastante conclusiva e didática, não é o que acontece com esse. O terceiro e o último ato desafia o público e pode tornar o filme um clássico caso de “ame ou odeie”. Jordan agora aposta em um terror fantástico, com elementos demasiadamente inusitados e complexos para o circuito comercial. O filme abre vários parênteses que deixam interpretações em aberto.

Foto: Universal/Divulgação
Contudo, algumas pistas são soltas. O versículo bíblico Jeremias 11:11, que trata de um Deus que vira as costas ao povo, aparece constantemente em contextos enigmáticos. Os sósias vivem em túneis abandonados que cortam os EUA, uma provável alusão à Ferrovia Subterrânea que simboliza um período obscuro da escravidão yankee. Nós evoca discussões imediatas ao fim da sessão e merece pesquisas na internet para analisar outros pontos de vista. Independe da conclusão de cada um, o filme continua apontando Jordan Peele como edificador de uma nova - e ousada - forma de pensar o terror.

Assista ao trailer:

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