literatura

'Não dá para ser indiferente em relação a essa eleição', diz filósofo Vladimir Safatle

Escritor afirma que resultado do pleito de amanhã 'reconstitui o quadro político nacional'

Publicado em: 27/10/2018 11:38

Foto: TÚLIO SANTOS/EM/D.A.PRESS

Doutor em filosofia pela Universidade de Paris, professor da Universidade de São Paulo (USP), autor de ao menos uma dezena livros em três línguas, o filósofo Vladimir Safatle é dono de um ponto de vista respeitado e respaldado no debate sócio-político nacional. Em suas obras, aborda temas relativos à psicanálise, à teoria do conhecimento, reflete sobre a tradição dialética pós-hegeliana e também joga luz sobre páginas sombrias da história nacional.

Filho do ex-guerrilheiro Fernando Safatle (membro da Aliança Libertadora Nacional), Vladimir nasceu no Chile, no ano de 1973. Veio para o Brasil ainda na infância. Diante do tenso cenário eleitoral brasileiro, no qual a discussão sobre o passado ditatorial se impôs, o filósofo compartilha seus conhecimentos, alertando para os fenômenos que explicam as circunstâncias atuais.

Vladimir Safatle foi o convidado do Sempre Um Papo, em Belo Horizonte. O tema da conversa foi "A ascensão do conservadorismo no Brasil". Em aproximadamente uma hora de exposição, Safatle tratou de ideias que desenvolve em seu livro mais recente, O circuito dos afetos - Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo, lançado em 2015 e relançado no ano seguinte pela editora Autêntica.

O autor pontuou que a emergência dos extremos ideológicos é produto de  “um eixo de fatores nacionais e outro internacional”.

Para ele, o modelo de organização social neoliberal coloca uma visão composta “radicalmente por uma associação de indivíduos”. “São pessoas com particularidades de interesses, que procuram defendê-los. Mas há um elemento decisivo, que é baseado na circulação de afetos”, argumenta. Dentro dessa característica fundamental, os indivíduos têm direito a desejar tudo, o que resulta em uma relação belicista, concorrencial, baseada no temor da perda e de ser despossuído dos objetos de seu desejo, que flerta com o militarismo.

Na visão de Safatle, o cenário ocasiona medo e pauperização generalizados, com intensificação dos regimes de trabalho, achatamento dos salários e uma precarização geral, responsável por desestabilizar o conceito de democratização que conhecíamos nas últimas décadas. Nessa perspectiva, criou-se um senso de que o regime normal de funcionamento dos governos não garantia mais prosperidade, nem enriquecimento, nem segurança. O resultado foi um aumento da identificação com os extremos, não só do conservadorismo, mas também da extrema esquerda, em alguns países.

No entanto, para o autor de O que resta da ditadura: A exceção brasileira, o Brasil possui “especificidades explosivas” nesse contexto. “É um país incapaz de elaborar seu próprio passado. Ele é assombrado pelo seu passado”, avalia. Aplaudido em muitos momentos pela plateia, Safatle afirmou que nunca houve um “acerto de contas” com a ditadura militar, enfatizando, por exemplo que torturadores jamais foram punidos por seus crimes, descrevendo o processo conciliatório de redemocratização como “uma aberração”.

De acordo com o raciocínio do filósofo, o avanço do conservadorismo no país permitiu que o fascismo, em suas características históricas, seja identificado hoje em muitas manifestações atuais, sob um discurso de restauração e manutenção da ordem, especialmente após os acontecimentos políticos dos últimos cinco anos. A íntegra da palestra está disponível na página do Sempre Um Papo no Facebook. 

Entrevista // Vladimir Safatle


Você entende a sociedade fundamentalmente como um grande circuito de afetos. Como é esse conceito e por que essa estrutura está em xeque neste momento? 
De fato, a política é uma questão de circuito de afeto. Isso significa que é necessário entender como as relações são constituídas a partir da circulação de certos afetos. Esses afetos produzem certos tipos de corpos políticos. Nesse momento, alguns afetos são hegemônicos, e o medo é um deles. É mobilizado através dos discursos ligados à segurança, fronteira, ordem. A questão é como quebrar esse circuito de afeto, que é muito reativo, produzindo outro.

Dentro desse circuito de afetos, podemos observar hoje o ódio muito latente nas esferas políticas e sociais. Não só no Brasil, mas em outras sociedades pelo mundo. Por que nos encontramos nessa situação e qual seria o caminho para revertê-la? 
Acho que há um problema na análise dos fenômenos a partir do ódio, porque o ódio é um conceito quase teológico. É o mal, o irracional. Mais do que ódio, temos elementos mais importantes, como o ressentimento. Uma ideia de que certos tipos de relação em que os sujeitos aparecem como vítimas de violências que não podem ser reparadas, que são reprisadas várias e várias vezes, que acabam alimentando certas figuras de inimigos em potencial.

Você questiona também novas formas de corporeidade política, a partir do rompimento dos corpos anteriores. Tanto as ideologias tradicionais da esquerda quantos os modelos do capitalismo estariam sob forte escrutínio. Quais são as consequências disso nos modelos democráticos que conhecemos?
A maior delas é a necessidade de inventar outra forma de democracia. Seja com maior participação direta, seja com maior fortalecimento do poder popular em detrimento dos termos de representação. Isso é uma tarefa ainda a ser realizada, está longe de ser algo no nosso horizonte, mas significa que pode ser um fator importante de mobilização daqui para a frente.

Considerando as tensões e o acirramento ideológico das disputas eleitorais como vimos no último pleito norte-americano e em outros países, você diria que as nossas soluções democráticas de representação estão em crise?
Sim, com certeza. No caso brasileiro, é ainda mais explícito. Nem sequer a democracia representativa foi consolidada no Brasil. Temos um sistema parlamentar muito marcado pelo abuso de poder econômico, pela representação privilegiada de certas classes em detrimento de outras, de certos grupos em detrimento de outros. Isso criou uma situação em que há um déficit como elemento decisivo.

Você disse em entrevista à Rádio França Internacional, em abril, que Bolsonaro não seria um candidato para ganhar, apenas para levar a pauta do debate para a direita, tal qual Marine Le Pen, na França. O candidato, além de ser o mais votado no primeiro turno, lidera as pesquisas de intenção de voto. Por que ele se tornou um candidato capaz de ganhar?
Errei na análise, mesmo. Não esperava que esse modelo de campanha que ele utilizou fosse tão devastador. Um modelo de campanha que ninguém esperava. Baseado muito em circulação de mentira, fake news e num esvaziamento brutal da esfera pública. Não há debate, não há visibilidade ou circulação de ideias, não tem nada. E uma mobilização desses recursos de deep web muito grande, que ninguém nunca tinha visto. Isso mudou muito o quadro de elegibilidade dele.

Você também disse em entrevistas recentes que um golpe militar no Brasil, inclusive nos moldes tradicionais, sem maquiagens, era um risco real. Acha que essa ameaça independente do candidato que vença a eleição? 
Hoje em dia, as Forças Armadas ocupam um papel muito anômalo na estrutura política brasileira. Esse papel faz com que elas funcionem quase como um poder moderador e, independentemente do resultado, é muito provável que isso permaneça. Em segundo lugar, eu diria que o Brasil tem um déficit de dever de memória muito grande. Não houve uma elaboração sobre a ditadura, sobre o significado dela. O Brasil é um país onde nenhum torturador foi preso, e isso acabou liberando um certo discurso militarista da confrontação com seus próprios efeitos. Estamos vendo agora as consequências.

Às vésperas da eleição, a população tende a imaginar cenários de transformação, caso um candidato ou outro ganhe. Em sua opinião, há algum tipo de transformação por vir no país que independa do vencedor das eleições?
Não, acho que essa eleição é decisiva. Ela reconstitui completamente o quadro político nacional. Não dá para ser indiferente em relação a ela. O que indica também que vai haver uma reconfiguração necessária de vários atores políticos, mas ela é um marco.
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