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Primeira mulher a comandar uma Nação de Maracatu Baque Virado, Mestra Joana é símbolo da força feminina na cultura popular

Coordenando mais de 20 grupos femininos pelo país, líder do Encanto do Pina também viaja o mundo divulgando seus conhecimentos e formando novos batuqueiros

Publicado em: 24/08/2018 10:14 | Atualizado em: 24/05/2020 19:19

Mestra Joana enfrentou inúmeros obstáculos até se consolidar como uma referência da força feminina na cultura popular (Foto: Gabriel Melo/Esp. DP)
Mestra Joana enfrentou inúmeros obstáculos até se consolidar como uma referência da força feminina na cultura popular (Foto: Gabriel Melo/Esp. DP)


Há dez anos, a Comunidade do Bode, localizada na periferia do Pina, Zona Sul do Recife, foi palco de um fenômeno inédito para a cultura popular pernambucana. Estabelecendo o que acreditavam ser comunicação direta com os orixás através dos búzios, matriarcas do Candomblé descobriram que Joana D’arc da Silva Cavalcante deveria ser a próxima mestre da Nação do Maracatu Encanto do Pina, cuja sede fica na Rua Oswaldo Machado. A primeira mulher da história a ocupar o posto numa nação de baque virado, manifestação afrodescendente de destaque no estado. Para as matriarcas, era como um sinal divino de que os tempos estavam mudando.

Protagonista dessa transformação, Mestra Joana enfrentou inúmeros obstáculos até se consolidar como uma referência da força feminina na cultura popular. "No início, foi bem doloroso e desafiador. Muitos homens não me aceitaram, tive a rejeição de muitas pessoas. Vários batuqueiros deixaram a Nação porque não queriam ser regidos por uma mulher. Praticamente reiniciei o Encanto do Pina do zero. Hoje, já posso dizer que é uma missão que está dando certo", diz a pernambucana de 39 anos, atualmente grávida de sete meses. 

A história de Joana om o maracatu começa no dia de seu nascimento. Foi criada no terreiro do Candomblé de Dona Maria da Sônia, sua bisavó - fundadora do Encanto do Pina. Sempre teve referências femininas nesse universo, pois o Pina é repleto de yalorixás - mães de santo que possuem reconhecimento social e força de mobilização. “Mãe Laura, Enédia, Maria da Quixaba, Helena. São todas referências para mim e várias outras dessa nova geração”, comenta. Apesar disso, ela só tomaria conta da importância da representatividade feminina mais tarde.

Sem as vestes do maracatu, apenas de vestido rosa e óculos de grau, ela mantém a presença imponente de uma líder (Foto: Gabriel Melo/Esp. DP)
Sem as vestes do maracatu, apenas de vestido rosa e óculos de grau, ela mantém a presença imponente de uma líder (Foto: Gabriel Melo/Esp. DP)


Aos 18 anos, sentindo a carência de opções culturais e de lazer para crianças e adolescentes da periferia, Joana criou o grupo Filhas do Oxum Opará, dando aulas de dança e canto para meninas de 7 a 18 anos. "Foi algo natural, não se trata exatamente de ser professora e sim de transmitir vivências e conhecimentos dentro da comunidade. É uma questão de necessidade”, conta. Em 2006, iniciou o grupo musical Mazuca da Quixaba, que resgata fragmentos da história oral de velhos mestres com ritmo do coco de terreiro.

A grande virada na vida de Joana veio em 2008, quando se tornou mestra do Encanto do Pina, instituição que também realiza trabalhos sociais e culturais, oferecendo oficinas de percussão, dança, capoeira e atividades pedagógicas com o Encontrinho, voltado para crianças. Assumir o papel de liderança foi também um despertar para o machismo que rodeava seu cotidiano. "Na comunidade, a educação e informação chegam precariamente. Aqui, nós não conseguimos identificar machismo, racismo ou opressão. Nascemos aprendendo a servir ao homem, é algo imposto. Ensinam que, para a mulher ser alguém na vida, tem que ter um bom marido e um bom casamento, ser uma boa dona de casa. Tudo isso é visível.”

EMPODERAMENTO
Sua resposta ao patriarcado foi criar o Maracatu Baque Mulher, grupo formado unicamente por batuqueiras que apoiam a luta feminina contra a violência, pelo empoderamento e sororidade. "Criei o grupo apenas para nos juntarmos enquanto mulheres, mas acabou virando um espaço de empoderamento, pois passamos a identificar dificuldades no dia a dia das batuqueiras. Trabalhar assuntos como machismo, agressão e violência doméstica na comunidade é muito difícil, aqui estamos muito mais vulneráveis. Mas, quando cantamos, as mulheres vão querer saber os significados dessas palavras.”

Hoje, o Baque Mulher conta com mais de 20 filiais espalhadas por todas as regiões do país. As integrantes realizam ações em suas próprias comunidades, sempre apoiadas nos fundamentos do grupo e sob orientações de Mestra Joana. “Temos um movimento bem fortalecido e com muita comunicação. Todas as coordenadoras precisam vir ao Recife pelo menos quatro vezes ao ano”, explica. Os encontros do grupo, que conta com 90 mulheres, acontecem na sede do Encanto do Pina.

O Baque Mulher de Pernambuco agrega mais de 90 batuqueiras (Foto: Peu Ricardo/DP)
O Baque Mulher de Pernambuco agrega mais de 90 batuqueiras (Foto: Peu Ricardo/DP)


Como professora de maracatu - fundamentos, batuque e dança -, Mestra Joana tem viajado pelo Brasil e outros países, divulgando conhecimentos e formando novos batuqueiros. Em 2016, participou do Rencontre Internationale de Maracatu, em Paris, na França. “Conhecer o exterior me deu a noção da dimensão da força que o maracatu tem, a válvula de escape que ele é para muitas pessoas. Ressalto que é importante também resgatar a religiosidade envolvida nessa cultura. Nosso povo já foi muito oprimido por querer exercitar o candomblé, mas não tem como desvincular isso do maracatu”, opina.

O sonho de Mestra Joana agora é ampliar a sede do Encanto do Pina e atender cada vez mais crianças no Encantinho. Eles aceitam doações. Mais informações no site: nacaoencantodopina.maracatu.org.br. “Tudo é sustentado com muita luta e esforço. Temos certa receita com as atividades do carnaval, mas o dia a dia é mantido com as oficinas que ministro pelo país. Também estamos na luta para encontrar um espaço apenas para o Baque Mulher, pois está ficando difícil abrigar todo mundo na sede da nação." Outro desejo é o nascimento de sua filha Jadiana, certamente mais batuqueira da tropa feminina da Mestra.

Confira os horários de atividades:

Oficinas de maracatu Adulto e Infantil: sábados, às 15h
Atividades pedagógicas do Encantinho: sábados, às 14h
Rodas de diálogos e oficinas de maracatu do Baque Mulher: domingos, das 14h às 17h
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