Marcelo D'Salete ganha Prêmio Eisner por quadrinhos sobre resistência negra
Brasileiro, que tem trabalho pautado na temática racial, publicou recentemente livro a respeito dos mocambos de Palmares
Publicado: 23/07/2018 às 13:30

HQ também foi publicada em edições na Europa. Imagem: Veneta/Divulgação/
O quadrinista brasileiro Marcelo D’Salete foi o vencedor do Prêmio Eisner 2018 na categoria Melhor Edição Americana de Material Estrangeiro, pela HQ Cumbe (Veneta, 192 páginas, R$ 54,90). Publicada pela primeira vez no Brasil em 2014, a edição saiu nos EUA em 2017, sob o título Run for It – Stories of slaves who fought for the freedom, pela editora Fantagraphics.
Mais tradicional premiação dos quadrinhos nos EUA, o Eisner é entregue anualmente durante cerimônia na San Diego Comic-Con. Neste ano, a entrega dos troféus foi realizada no sábado (21).
Cumbe reúne histórias curtas sobre a resistência de negros contra a escravidão durante o Brasil Colonial. A temática, aliás, foi abordada também na mais recente obra de Marcelo D’Salete, Angola Janga: Uma história de Palmares (Veneta, 432 páginas, R$ 89,90), que traz narrativas ambientadas nos mocambos de Palmares, situado na antiga Capitania de Pernambuco e, hoje, território de Alagoas.
A questão racial, a propósito, é parte indissociável da produção artística de Marcelo D’Salete. "Acho importante trazer isso dentro de uma linguagem, de certo modo, acessível, como são os quadrinhos", justifica D’Salete. "Vejo muita gente que vai atrás desses livros e não é leitor tradicional de quadrinhos. São pessoas interessadas em história, cultura, em falar sobre Brasil, de outra perspectiva", reforça.
"Rever esse passado e enxergar sobre como temos vários reflexos no Brasil de hoje é fundamental", acrescenta o quadrinista, que também é mestre em história da arte. Entre os problemas que perduram desse período, ele cita a dificuldade de acesso a postos de poder não só para negros, mas para indígenas e pobres. "Grande parte da nossa história foi dentro de um sistema escravocrata, em que milhões de pessoas foram escravizadas", destaca D’Salete, lembrando que o Brasil foi um dos últimos a abolir a escravidão.
O quadrinista fala sobre "a violência simbólica e física" que atinge, sobretudo, jovens negros da periferia, algo não tão diferente das atrocidades cometidas no passado. "Essas pessoas não são tratadas como gente, como cidadãos que têm direitos, dignidade. Nossa sociedade cria uma hierarquia do que é considerado humano, as pessoas que são protegidas e aquelas que serão dizimadas nos presídios e em outros locais".
[Entrevista // Marcelo D’Salete, quadrinista
Costumamos ver poucos quadrinistas negros. Falta maior visibilidade ou é difícil o acesso ao mercado?
Percebo que existem poucos quadrinistas profissionais negros, é uma área razoavelmente elitizada, como boa parte das artes. É uma área que requer também muitos anos de formação. E além de anos de formação, para insistir nessa área durante algum tempo, é importante que você tenha como pagar as suas contas. Isso faz com que nem todo mundo se atreva a tentar realizar quadrinhos. São anos esperando um retorno, não é imediato. São questões que influem na quantidade de artistas que vemos por aí, negros ou não. Existem até alguns artistas negros por aí produzindo quadrinhos, mas nem sempre trabalhando com história e cultura negra.
Alguns personagens negros têm recebido maior destaque na cultura pop, principalmente nas HQs e no cinema. O que acha desse movimento?
É importante ter personagens negros em várias áreas, para a formação de novos públicos e como representação para a comunidade negra. Mas vejo isso sempre com um pouco de suspeita. São grandes empreendimentos, extremamente comerciais, interessados em conseguir certa fatia do mercado, de certo público. Muitas vezes as empresas vão atrás do que seja um diferencial, em termos de identidade de personagens (negros, gays, mulheres etc.), mas não deixam de lado o viés comercial que há por trás. Não adianta apenas colocar um personagem feminino, um negro, dentro dessa lógica de quadrinho industrial se não consegue alterar as narrativas sobre esses personagens.
Mas enxerga avanços na representatividade?
A gente acaba tendo uma reserva, um espaço, dentro do mercado. É interessante pensar em obras que possam romper essa lógica de apenas interessar uma fatia do público. De fato, há um pouco mais de diversidade de representação na mídia, mas a indústria por trás disso permanece a mesma, de forma extremamente hierarquizada e algumas pessoas continuam sem acesso a certos postos de poder.
Acredita que estamos caminhando para uma sociedade menos racista e opressora?
É importante ser otimista, que a gente tenha esperança. Em nome das muitas outras pessoas, que na sua época, no seu período, lutaram contra isso. A gente tem que ser otimista. A esperança é algo que a elite, que está aí e pretende manter o poder na mão das mesmas pessoas, não pode tirar dos oprimidos. É preciso ter esperança e criatividade para lutar, de várias formas possíveis, por uma representação digna, por novas narrativas, por novos discursos.
*Entrevista concedida durante a Comic Con Experience (CCXP), em dezembro de 2017, em São Paulo.

