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Crítica: Filme O Insulto atravessa fronteiras para se refugiar no coração

Filme libanês foi indicado ao Oscar na categoria de Melhor Filme Estrangeiro

Publicado em: 08/03/2018 22:13 | Atualizado em: 08/03/2018 22:13

Drama libanês foi dirigido e escrito por Ziad Doueiri. Foto: Ezekiel Films/Divulgação

O sofrimento se aloja no passado de dois modos. Por um lado, comoesquecimento, que é uma estratégia malfadada de lidar com a memória porque em geral o que tentamos esquecer se manifesta em nosso comportamento sem que tenhamos clareza. Por outro, como compulsão à repetição: por uma memória que congela o presente e se faz perene. O sofrimento em todos os dois casos permanece como ressentimento. Como o sentimento que não cessa. Ressoa. O passado que não passa. É, por isso, que um insulto raramente é apenas um insulto. Ele mais do que cicatriz; é ferida aberta. Carne viva.

O filme O insulto atravessa fronteiras para se refugiar no coração, para retomar a expressão da jovem e brilhante advogada, representada por Diamand Bou Abboud: da "natureza humana". Certo. As dúvidas sobre o que seria a natureza humana não são sonegáveis; se é que há uma natureza humana. Mas, há algo em O insulto que mobiliza muitos humanos. Ele toca em sentimentos compartilhados não apenas por pessoas do Oriente Médio onde é ambientado o filme. Notadamente, O insulto mostra que o ressentimento muitas vezes conjuga dois sentimentos fundamentais: raiva (cólera) e ódio.A raivapalpitante presente nos vários closes em que se foca a "maça de Adão" de Yasser. A raiva que consome Tony expressa no seu olhar irresoluto. O ódio tão visceral quanto extravagante que atinge, corta, sobretudo; agride verbalmente e fisicamente. Simplesmente, agride.

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O insulto trata da hipertrofia da memória; do excesso de memória que faz os sentimentos não terem fim. É quando a doença é não esquecer. Ou ainda, quando convertemos a contingência da existência, o modo acidental como nossas vidas se desenrolam, num enredo comum; governado pela marca do mesmo sofrimento.O passado, que por não passar, é o presente que não cessa e, para tomar emprestada a expressão de Paul Ricoeur, faz do horizonte de esperar (futuro) a imagem da monotonia, do mesmo. O que pode ser visto, por exemplo, no diálogo de Yasser e Tony com o presidente em que Tony enfaticamente assere, ao seu modo, que o perdão não se oferece, nem mesmo diplomaticamente, a quem não o pede sinceramente, a quem não está disposto a se dar por completo; faço aqui referência à origem etimológica da palavra perdão (per-donare); dar-se por completo.

Esse é o momento em que a acidentalidade da existência ganha um novo contorno narrativo. É o momento também em que o esquecimento pode curar. Depois do choque entre as portas, quando Tony e Yasser tentam abrir o carro ao mesmo tempo,após a reunião com o presidente, o carro de Yasser não consegue dar partida (simbolicamente ele não suportava mais a situação dramática que a briga por uma calha tinha desencadeado) e Tony volta para exercer o seu ofício de mecânico. Ele conserta o carro de Yasser. Nada é pedido, nada é falado. No entanto, de algum modo Tony foi capaz de sair de si, de oferecer-se naquilo que naquele contexto lhe era possível. Um gesto.

Foi esse gesto que liberou Tony para ir à sua terra natal, onde suas pessoas queridas foram dizimadas por refugiados palestinos como Yasser, para lá se demorar em suas lembranças. Elaborar o luto, como certa vez disse Freud. Ele foi mais precisamente para perto dos trilhos; tão presentes em seus sonhos e que foi também a sua rota de fuga com o seu pai para evitarem a morte iminente. Tony se reconciliou com o seu passado. Era a hora de Tony se ocupar do seu próprio e convalescente filho; símbolo de mais um dos tantos civis mortos ou feridos numa guerra que não lhes pertence. O cuidado e a compaixão ainda podem mover mundos, povos e derrubar fronteiras. 

Yasser vai à casa de Tony não sob a coação de um perdão forçado pelo seu chefe (para fazer as coisas andarem; o governo, o mercado, etc.) que terminou por culminar com uma agressão verbal de Tony, prontamente revidada por Yasser com a violência de um soco, no estômago, nas vísceras. Ele vai também para agredir verbalmente Tony. Desta feita, Tony prontamente o agride, fisicamente. Entendemos nesta cena que o sofrimento não pode ser visto com escalas, como uma das personagens no tribunal disse com justeza, em que alguns sofrimentos são mais importantes do que outros. Na ótica das escalas, o sofrimento nunca se dissolve.

Menos do que oferecer a outra face, Yasser foi mobilizado pela capacidade de esquecimento de Tony. O esquecimento não é apagar a memória, mas lhe ofertar um cardápio de fatos os quais até então tinham sido eclipsados pelo ódio. A memória é sempre e invariavelmente seleção de fatos; mais ainda: de interpretações. Se a calha, em função da qual se iniciou o conflito, não é apenas uma calha, quando a narrativa do ressentimento toma as personagens, o conserto do carro e, posteriormente, da própria calha não é apenas um conserto mais uma forma de perdoar e pedir perdão própria de quemconsegue se dar por completo.

Se a irreversibilidade dos fatos nos responsabiliza para sempre pelo o que fazemos, só o perdão é capaz de liberta nosso horizonte de expectativas e permitir que o presente não seja apenas a repetição do passado. Ou seja, se somos vulneráveis ao erro, não menos certo é que somos capazes dedar outro significado, mais empático e menos acirrado, ao passado. Isso ocorre quando conseguimos selecionar outras lembranças e também elaborar melhor aquelas que não conseguimos esquecer. Ainda que guardado apenas nos olhares finais das duas principais personagens, O insulto é um filme sobre o perdão e sobre como ele pode nos curar.

Érico Andrade é filósofo e professor de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuc, sócio do Círculo Psicanalítico de Pernambuco e Crítico de cinema

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