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'O grande deus, atualmente, é o mercado', diz pesquisadora da obra de Nietzsche

Pesquisadora Maria Cristina Franco Ferraz lança livro na Torre Malakoff nesta sexta-feira

Publicado em: 22/02/2018 21:50

Filósofo detectou a "morte de Deus". Foto: Wikipedia/Reprodução


"Deus está morto". Com esse aforismo icônico, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche apontou, em sua época, o esfacelamento da importância atribuída ao sagrado na sociedade ocidental. Em decorrência disso, os valores morais se tornaram escassos (ou inexistentes), abrindo espaço para o niilismo e o “cinismo”. No Brasil contemporâneo, a pesquisadora Maria Cristina Franco Ferraz, doutora em filosofia pela Sorbonne, identifica reflexos desse movimento: “A ruína de valores se apresenta sob a forma da corrupção, da total ausência de preocupação com a população, tanto por parte dos dirigentes quanto das classes abastadas”. Nesse contexto, o capital vai aos poucos tomando o lugar de Deus.

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Especialista na obra do filósofo, a professora da UFRJ vem à capital pernambucana para lançamento do livro Nietzsche, o bufão dos deuses (N-1 edições, 256 páginas, R$ 44), às 19h30 desta sexta-feira (23), na Torre Malakoff (Praça do Arsenal da Marinha, s/n, Bairro do Recife). Na ocasião, haverá bate-papo com a autora, leitura de cartas do pensador alemão por Luna Vitrolira e apresentação musical de Bruno Nascimento. O acesso ao público é gratuito.

A obra é fruto de uma vasta pesquisa, incluindo a leitura de oito volumes de correspondências de Nietzsche, e se debruça sobre o período do surgimento do livro Ecce homo (1908), cujo tom é bastante autobiográfico. Assim, são esclarecidas não somente as facetas da vida do autor de Assim falou Zaratustra, como também o teor das suas ideias e o legado para o pensamento mundial.

Entrevista - Maria Cristina Franco Ferraz // pesquisadora

Qual a importância de se debruçar sobre o período de surgimento de Ecce homo para a compreensão de Nietzsche? Qual o papel das relações pessoais do filósofo e das informações biográficas nesse entendimento da obra?
Ecce homo foi o último texto escrito por Nietzsche, às vésperas do seu colapso. Estava ainda sendo escrito e alterado, no final de 1888. O tom da obra é bufo e ousado. Ouve-se igualmente a exasperação do filósofo com os mal-entendidos que já cercavam sua obra. Alguns deles perseguiram a obra ao longo do século 20. O livro deixa claro o horror de Nietzsche ao nacionalismo alemão, ao antissemitismo e mito de superioridade racial. Ler esse texto e colocá-lo em relação com aspectos biográficos e com cartas possibilita inviabilizar mal-entendidos acerca de seu pensamento. Por exemplo, a confusão com o movimento antissemita na Alemanha da época cercava o filósofo por três lados: casamento de sua irmã com um notório antissemita, relação com Wagner (embora rompida há décadas) e editores que se envolveram com tal movimento à época ainda clandestinos. Umas das coisas que faço no livro é levantar o material biográfico e epistolar, porque Ecce homo, por ser autobiográfico, para o leitor atual e até mesmo estrangeiro, fica um pouco cifrado, difícil de ser entendido. (...) Nietzsche tinha horror ao alemão do Reich, verdadeira ojeriza, e tenta se aproximar da cultura francesa e até da sua suposta origem polonesa. De todo modo, ele desde que foi professor na Suíça, tornou-se um apátrida. Renegava tudo o que estava acontecendo na Alemanha da época. Fica difícil entender a autobiografia sem esses elementos.

É possível dizer que a contemporaneidade tem traços do que Nietzsche profetizou ao falar sobre a “morte de Deus”, como o afrouxamento de ideologias?
Não foi Nietzsche que decretou a morte de Deus. Ele identificou na civilização ocidental um declínio da referência metafísica, da referência a Deus. Na cultura alemã isso é identificado desde o século 18. O Deus estar morto na nossa civilização, a paulatina derrocada do plano metafísico, é um movimento da história da civilização ocidental que vai cada vez mais em direção à matéria, ao capital. O grande deus, atualmente, é o mercado. O que o Nietzsche detecta, sobretudo, é essa faceta do niilismo. Ou seja, uma vez ruídos os valores transcendentes, é como se não tivesse restado valor nenhum. É o cinismo que paira sobre nossa civilização. Tem esse diagnóstico que Nietzsche faz. Não para retornar a Deus, mas para identificar os nossos problemas. O que ele propõe como divindade é uma divindade oriental, dionisíaca que, ao contrário da judaico-cristã, abençoa esta terra e não promete uma melhor do que esta depois da morte, pois esta é a única que há e, portanto, deve ser louvada e abençoada. Esse tema do amor à terra tem a maior pregnância no presente.

À luz do pensamento nietzschiano, como avalia a situação sociopolítica brasileira? 
Esse aspecto da ruína dos valores, de não haver valores de referência, é péssima notícia para aqueles que são fracos, como Nietzsche chama aqueles que são niilistas. Sem essas referências, caem num vazio de valores. A perspectiva filosófica nietzschiana convoca que, uma vez que não haja valores eternos, imutáveis, transcendentes, que a gente crie valores. A gente está num momento do Brasil que vive esse impasse. A ruína dos valores se apresenta sob a forma da corrupção, da total ausência de preocupação com a população, no campo dos dirigentes e das classes abastadas, que são cínicas, que pretendem extrair o máximo dessa vida, sem nenhum compromisso com o outro, com a terra.

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