Cinema

Crítica: indicado ao Oscar, Corra! aterroriza pela potente metáfora sobre o racismo

No filme, a lobotomia é a imagem metafórica mais potente da opressão

Publicado em: 27/02/2018 21:31 | Atualizado em: 27/02/2018 22:48

Originalmente intitulado Get Out, filme estreou nos EUA em 24 de janeiro de 2017 no Festival Sundance. Foto: Universal/Reprodução

A cabeça de um alce na sala. Personagens sombrias que falam sempre para não deixar o segredo conspiratório aparecer: a fala que esconde. Ambientes silenciosos o suficiente para dar destaque a pequenos e ensurdecedoressons como a colher de Missy Armitage que mexe o chá na xícara. Pessoas que como vultos trafegam pela casa; sempre à meia luz. Pessoas feridas, até à bala, que resistem em morrer para prorrogar a saga persecutória. Cenários clássicos dos filmes de terror norte-americano compõem a atmosfera sufocante de Corra! Mas o que rouba a nossa respiração não é a trama de terror, suspense, cujo enredo é didaticamente apresentado pelo diretor Jordan Peele; algumas vezes por meio do recurso ao flashback.

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O que choca é quando o terror é metáfora. O solo do qual brota a metáfora é demasiadamente americano e, sem dúvida, brasileiro. A ideia de que é possível não ser racista numa sociedade racista abre o filme. Os argumentos, sabemos, são os mesmos com a diferença de um ao qual o Brasil, diferentemente dos USA, sequer pode se reportar: eles elegeram um presidente negro. O pai de Rose (namorada da personagem principal e negra Chris) não seria racista porque votaria em Obama pela terceira vez, se possível. Ele não é racista, agora a partir de sua própria boca, pela consciência de que só tem dois empregados negros por os considerar da família e por ser bondoso e grato o suficiente para não os demitir; embora se sinta autorizado a explorá-los. Para a caricatura do racismo, o diretor reservou o irmão de Rose; personagem que representa tantas pessoas e cujos comentários infames, racistas, são supostamente atenuados por seu perfil delirante e bêbado. A sua família reclama do seu modo pouco hospitaleiro em relação a Chris, mas não diretamente do seu racismo; como acontece, aliás, nas “sensatas” famílias brasileiras.

Num ambiente branco, exclusivamente branco, os negros entram como acessórios. Não apenas porque os funcionários são negros, que também é o que há de mais óbvio no Brasil, mas porque seus corpos são desejados de modo fragmentado. O corpo negro é fatiado em diferentes habilidades. Ele interessa apenas no que pode prover, fragmentariamente, ao branco. Além disso, apropria-se culturalmente da estética negra sem nenhum intuito de combater o racismo, mas para ratificá-lo porque faz da cultura negra apenas um adorno mercadológico sem nenhuma história.

Quando opta por deixar os negros lobotomizados, o diretor Jordan Peele retira de cena a dialética do senhor e do escravo e toda a ambiguidade do processo de escravidão, conforme narrou Hegel, para radicalizar a tese de que a dominação é estruturada na opressão. A lobotomia é a imagem metafórica mais potente da opressão. Ela mostra que longe de desejarem ser escravos (por uma espécie de artimanha inconsciente da sujeição) os negros foram, torturados, agredidos e silenciados como numa história de terror em que a personagem não consegue falar porque lhe foi retirado o direito fundamental à liberdade. O sangue, abundantemente presente nos filmes de terror, mostra, contudo, que o direito à liberdade não se recebe, mas se conquista. Chris o conquistou.

Filósofo e professor de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco / Sócio do Círculo Psicanalítico de Pernambuco / Crítico de cinema

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